aforismos e afins

13 novembro 2005

Evoluções e reflexões

Acompanhei hoje o interessante debate na TSF sobre os tumultos em França, com a participação de Adriano Moreira, entre outros. Julgo que é unânime - à parte os esquerdistas habituais de barricada - considerar AM uma pessoa sensata com opiniões sobre o mundo de hoje que não são influenciadas pela pequena política e pelo calculismo imediato. Parece-me também ser notória uma evolução do professor num sentido mais "compreensivo" - mais "holístico", menos "extremado", menos cheio de certezas - sobre os fenómenos complexos de hoje. Em vez de optar por respostas simplistas, ele prefere problematizar o todo. Pûs-me a pensar, também motivado por este post sobre o Lobo Antunes, na questão da "esquerdização" que alguns sofrem com a idade.

Freitas do Amaral será um exemplo que ocorre de imediato. As palavras de Lobo Antunes também nos fazem pensar. O que levará alguém a evoluir para a esquerda? Geralmente crê-se que quanto mais velho mais conservador. Mais sensato. Mais conhecedor da natureza humana. Menos sonhador. Mas julgo que a evolução contrária também é compreensível. Pode dever-se a uma juventude menos rebelde cujo "recalcamento" explode mais tarde. Pode advir de um pessimismo exagerado e pouco reflectido - uma espécie de dogmatismo quase religioso semelhante ao que alguns defensores acérrimos do "individualismo metodológico" professam, que depois se vai dissipando com os anos. Julgo que o motivo maior, no entanto, poderá ser a maior proximidade da morte.

A morte é o grande tabu e a grande fronteira. Não digo que a tal "esquerdização" seja consciente. Muito menos diria que seja um regressar à crença Rousseauina do mito do "bom selvagem". Não estou seguro que advenha do facto de o maior conhecimento e experiência permitirem uma visão mais "ampla" - leia-se: menos extremista, menos simplificad(or)a - da realidade. Não diria que é um querer encantar-se com o mundo que nos rodeia, numa espécie de procura de um pré-Nirvana que prepare a retirada final.
Na verdade tenho muito poucas respostas, e o que escrevi talvez não faça grande sentido. O que gostaria de frisar é que não podemos descartar o efeito parcial que a proximidade da morte pode ter nestas "evoluções". E essa chamada de atenção é tanto mais necessária quanto mais predominante é essa espécie de "conluio civilizacional" que vivemos no Ocidente, de acharmos a morte uma miragem e uma ilusão. E (a) calarmos.

11 Comments:

  • "... acharmos a morte uma miragem e uma ilusão. E (a) calarmos."
    Não sei se concordo muito com este ponto de vista; pelo contrário penso que deve haver relativamente poucas pessoas concientemente adultas que pensem na morte como uma miragem ou ilusão, o que me parece que acontece é que talvez não se pense o suficiente nela e aí concordo com o "(a) calarmos". A visão da morte é a visão no nosso íntimo da certeza da incerteza, e isso pode ser aterrador para uns, benigno para outros e mesmo indiferente para muitos. Penso que o "efeito parcial" da proximidade da morte se coloca em qualquer idade, e muito mais importante e relevante é o efeito total que advêm da própria existência - nossa e dos outros - esse efeito sim pode ser causador de "evoluções".

    By Anonymous Anónimo, at 2:36 da tarde  

  • Olá caro,

    Acho que sim, a ideia da "ilusão" era mais no sentido de "querermos" que ela o seja... mais do que sê-la de facto. Não sei se não diria "certeza da certeza" - embora perceba que te queiras referir (imagino) à incerteza do "depois". O efeito parcial existe não em qq idade, mas em quase todas. A ideia era enfatisar que ela se vai agudizando. Tx for d comment.

    By Blogger Tiago Mendes, at 2:40 da tarde  

  • "Não digo que a tal "esquerdização" seja consciente."

    A questão que levantas é deveras interessante. A idade, ou melhor as experiências adquiridas ao longo da existência humana, que papel possuem na modelação das convicções socio-políticas e em que estádio é que ocorrem. Não vou entrar no tema, bem complexo por sinal, mas apenas referir que achei sugestiva a frase que acima refiro.

    Ao validares a hipótese que a "esquerdização" não é apenas um acto consciente, leva-nos a pensar que a sociedade actual encara inconscientemente o tabu da morte como algo que deverá tender a ser igualitário, pelo próprio facto de constituir um tabu. Mas será esta uma posição resultante de uma "esquerdização", ou mais de uma reflexão interior do rumo da nossa existência, e de toda a sociedade à nossa semelhança? As alterações poderão aparentar ter um reflexo político, mas originam-se num prisma interior e privado, acoplado sem dúvida à religião. Até que ponto podemos classificar este fim como político, se são usados os meios pessoais, tendo em vista uma meta interior e "in"consciente?

    By Blogger Bruno Gouveia Gonçalves, at 2:45 da tarde  

  • "Ao validares a hipótese que a "esquerdização" não é apenas um acto consciente"

    Calma, caro! Lembra-te das discussões intermináveis sobre o papel da ciência: eu apenas "não invalidei" essa hipótese. As hipóteses nunca podem ser aceites - apenas não rejeitadas (ideia do Popper).

    "leva-nos a pensar que a sociedade actual encara inconscientemente o tabu da morte como algo que deverá tender a ser igualitário, pelo próprio facto de constituir um tabu."

    Muito interessante este ponto! Aliás, muito interessante toda a tua reflexão.

    "A idade, ou melhor as experiências adquiridas ao longo da existência humana, que papel possuem na modelação das convicções socio-políticas e em que estádio é que ocorrem. Não vou entrar no tema, bem complexo por sinal, mas apenas referir que achei sugestiva a frase que acima refiro."

    Mais outro ponto interessante... vou ver se pego nisso mais logo, e tu volta mais tarde também se quiseres, claro!

    By Blogger Tiago Mendes, at 2:52 da tarde  

  • Permite-me então a correcção:

    "Ao não invalidares a hipótese que a "esquerdização" não é apenas um acto consciente..."

    Fico à espera!

    By Blogger Bruno Gouveia Gonçalves, at 2:57 da tarde  

  • Ok! Tb "fico à espera" - de mim e de ti, I guess :)

    A hipótese é "sugerida" e proposta a debate e falasificação. Mais que "não invalidada", prefiro o "sugerida", proque afinal se o autor propõe algo é porque acha que há alguma força nisso. Perdoa o aparente pedantismo que isto pode ter tido, mas era só para ser o mais claro possível :)

    (não precisas de "re-reformular", obviamente)

    By Blogger Tiago Mendes, at 3:00 da tarde  

  • A esquerdição de que falas parece-me claramente inquinada de início. No caso do Lobo Antunes, ele expressamente referiu a viragem à esquerda. O que é esquerda para Lobo Antunes? Ou, melhor, o que tem sido a direita para Lobo Antunes?

    Confesso que dou pouco valor a esse estilo de declarações quando, muitas vezes, ter sido de direita foi, à sua maneira, uma rebelião contra um estado de coisas, uma desordem alavancada no sonho dos amanhãs que cantam. A capacidade de sonhar de de conformar o nosso dia-a-dia ao sonho não é de esquerda nem de direita. Conformar um governo ao sonho, isso já é coisa diferente.

    No caso de Adriano Moreira, é nele muito forte um sentido cristão da política. Esse sentido impediu provavelmente o Prof. de ser um verdadeiro conservador, ao mesmo tempo que a sua concepção de Estado nação o impediu de ser um verdadeiro democrata cristão.

    Existe esquerdização numa concepção de tolerância intelectual perante os actos de violência em França? Não concordo...

    By Blogger AMN, at 3:10 da tarde  

  • Obrigado pelos teus insights, ADolfo. Ajudam a esclarecer algumas coisas. Eu NÃO queria centrar a questão quer em Adriano Moreira, quer em Lobo Antunes: era apenas "pontos de partida" para o debate sobre um tema. Claro que se discordares qeu eles sejam um (bom) ponto de partida, a discussão fica meio inquinada - certo!

    "A capacidade de sonhar de de conformar o nosso dia-a-dia ao sonho não é de esquerda nem de direita."

    Percebo o teu ponto, mas repara que "estatisticamente" falando, tu encontrarias certamente uma correlação forte entre o "sonho" e o ser de esquerda. Não é causalidade, é correlação. Seria quase óbvio que rejeitarias a hipótese de que não haveria qualquer corelção. Isto são - como falamos de estat~itica, e de correlação e náo causalidade - atributos "populacionais" e nao "individuais". Ninguém diz que tu ou eu tenhamos menos "capacidade" ou "desejo" de sonhar. Apenas que na população se observa um "bias" à esquerda para ser mais sonhador - ou mais irrealista, como queiramos. A direita é assumidamente "pessimista antropologicamente" e isso faz alguma diferença (pelo menos).

    Subscrevo o que dizes sobre o sentido cristão da política de Adriano Moreira. QUanto a Lobo Antunes, acho demasiado complicado para tecer ideias, e não queria desfocar a discussão - que, repito, NÃO é personalizada: eram apenas "ilustrações" (talvez não as melhroes, admito - mas escrevi á pressa).

    Quanto a existir esquerdizaçãio numa concepção de "tolerânica inteelectual" perante os actos de violência em França, eu concordo absolutamente contigo... não sugeri isso. Mais uma vez temos que separar o que é correlação e causalidade.

    É possivel teres uma posição "ponderada" - isto é, não de barricada - emqualquer dos lados que estejas., Veja-se oq eu escreveu Henrique Raposo. Mas o mais comum é ver posições "pré-fabricadas". A esquerda está necessarimaente do lado das "vítimas", enquanto a direita não só está do lado da "ordem", mas certa direita adora responder a essa esquerda maniqueista e simplista na mesma moeda (ex: artigo do Luciano Amaral no DN).

    Eu - e isto segue-se ao debate "isento" que travei com o nosso caro Tony Amaral - acho que é possivel tentar alguma isenção e não ter que tomar posições nem extremadas nem aprioristicas. Por isso recuso chamar de "esquerda" ou de "direita" certas possições sobre o caso de França, se tiver respeito intelectual pelo interlocutor. Mas a maior parte das vezes n´so todos sabemos in avance o que certas pessoas vão dizer, porque são os clichés do costume e o rsultado da atitude de barricada que eles escolhem. O que não honra a honestidade intelectual e elevação do debate.

    PS: o objectivo do post era ser um pouco provocador/simplista para estimular o debate. Um bocado à TImshel, mas sem exageros!

    By Blogger Tiago Mendes, at 3:21 da tarde  

  • :)

    Claro que a esquerda é mais propícia à evasão espiritual e cultural no campo político. Ou seja, induz no pensamento político uma concepção que suscita e interpela a uma realidade desejada e sonhada.

    Mas, à direita, tens isso mesmo, tal qual, nos católicos progressistas que pulularam por essa Europa fora (em Portugal, foi substancialmente diferente. um dia poderemos falar sobre isso). Os católicos progressistas importaram para o pensamento político uma capacidade de evasão espiritual e apelaram a uma realidade metafísica a almejar.

    Claro que o tema da esquerda é muito mais tratado ao passo que esse aspecto, à direita, tem sido descurado e ignorado. Mas existe.

    Mas, na direita não católica, ou melhor, na direita que não importa o catolicismo para a cosmogonia política, existe, como em qualquer homem, o sonho, a evasão... Elas não correspondem, isso sim, a uma dinâmica política mas sim individual.

    By Blogger AMN, at 3:36 da tarde  

  • Não sei o que se passou exactamente com essa "esquerdização" de Lobo Antunes, mas acho difícil relacioná-la com a idade, a não ser neste aspecto: um jovem lisboeta de boas famílias, algo indiferente à política, entra em contacto com uma realidade social brutal no momento em que participa na guerra, e é levado a tomar posição. Quem leu "Os Cus de Judas" ou mesmo as raras entrevistas do escritor sabe como o chocavam a violência colonial, especialmente a que era exercida pela PIDE sobre os africanos. É conhecido o episódio em que Melo Antunes - amigo do escritor - confronta a PIDE, devido a um agente ter ferido (ou morto?) uma mulher grávida.

    Virar à esquerda, nesse contexto, seria tomar partido contra a guerra e contra o regime político, como fizeram tantos jovens nesse tempo. E mesmo aqueles que participaram nas movimentações políticas junto de organizações de ideologia marxista, fizeram-no por ser essa a única via aparentemente disponível no dia a dia, sem uma clara convicção ideológica; mais uma recusa do que uma escolha.

    Mais uma vez, estar a querer transpor uma coisa passada há décadas para os nossos dias, não faz sentido.

    By Blogger Joao Augusto Aldeia, at 3:40 da tarde  

  • Caro JA: de acordo. Reitero que a minha intenção não era mais que suscitar o debate, se possível "alheio" aos exemplos particulares dados, sobretudo o do Lobo Antunres. Fair enough, fui apressado na escrita...

    By Blogger Tiago Mendes, at 3:42 da tarde  

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