aforismos e afins

24 outubro 2005

"Sobre Cavaco"

Não nego o carácter estatista de Cavaco Silva. Sei que é responsável pela aberração que é o sistema de remunerações da função pública. Sei do seu apreço por esse mito que é o "investimento público". Mas conheço também as suas declarações em que afirmou que esse modelo era já insustentável. E acima de tudo, reconheço o papel liberalizador que teve na sociedade portuguesa. Dirão que qualquer um o faria. Que a entrada na então CEE tornaria tudo inevitável. Talvez. Mas o que é verdade é que nessa altura, o PS rejeitava ainda a revisão da Constituição, no sentido de anular a "irreversibilidade das nacionalizações". Não é portanto líquido que qualquer tomasse as mesmas opções que Cavaco tomou. E mesmo que fosse, isso não retira o mérito de quem, efectivamente, promoveu essas mudanças.

Cavaco tem consciência que o país precisa de menos Estado. Poderá querer mais Estado do que eu gostaria, mas quer menos do que aquilo que existe. Tem consciência da absoluta necessidade de levar a cabo uma série de profundas reformas. Mais. Tem consciência das tremendas dificuldades que, em democracia, qualquer Governo terá em as levar a cabo. Tem consciência que a crescente desconfiança dos eleitores relativamente à classe política ainda as dificulta mais. Tem consciência que a imagem positiva que hoje em dia uma grande parte do eleitorado tem do seu passado lhe garante a credibilidade que o eleitorado não reconhecerá a muitos mais. Uma imagem que lhe garante as condições, que eventualmente mais ninguém terá, para falar em dificuldades, sem provocar desconfiança e ressentimento.

(...) Cavaco é, dos vários candidatos, o único que percebe a necessidade dessas reformas. Mário Soares, se tivermos em conta o precedente do seu segundo mandato, aliado ao seu percurso recente, tudo fará para se intrometer em tudo, com a sua agenda de Porto Alegre, a "defesa da utopia", e o "verdadeiro socialismo" (o "verdadeiro PS" que ele acha ter sido afastado por Sócrates). Alegre não é muito diferente. E os outros quererão mais Estado. Só Estado. Cavaco quer menos. E tem a credibilidade que permitirá ajudar a promover essas reformas.

(...) O que poderá então Cavaco fazer? O que nenhum outro candidato fará. Viabilizar as medidas positivas que o Governo pretenda fazer avançar. Bloquear os eventuais despesismos, e rejeitar as nomeações duvidosas. E ajudar a estabilizar o sistema político. Mesmo que eu ache que ele deveria ser mudado, isso não implica que eu deseje o descalabro do dito. Não desejo. O que Cavaco não poderá fazer, será instalar um paraíso liberal em Portugal. Aliás, aqueles que dizem que ele o deveria fazer não desejam que ele o faça. Desejam, isso sim, criar-lhe problemas. Não o pode fazer, porque tal não depende única e exclusivamente da sua vontade. Tal dependeria de um Governo que pensasse da mesma forma. Isto leva-nos a outra questão. Para mudar Portugal, um presidente como Cavaco será uma ajuda. Mas um Governo diferente do de José Sócrates ajudaria muito mais.


Repescado daqui.

2 Comments:

  • Caro Tiago,

    Lamento mas não concordo. O mal menor não é nem nunca foi uma atitude que me agrade. Cavaco Silva foi, é, e será um social democrata. Para mim não serve. Por outro lado, se Cavaco tanto percebe de economia e sobre a libertação das amarras do Estado, deve concorrer a PM e apresentar as suas propostas liberais.

    By Anonymous Anónimo, at 9:16 da tarde  

  • Caro Filipe,

    Não tem nada que lamentar, eu é que tenho a agradecer o seu comentário. Aliás, percebo perfeitamente que quem se sinta suficientemente afastado da matriz social-democrata de Cavaco, sinta um incómodo grande em votar nele, que pode ir ao ponto de não ir na cantiga do "mal menor". Eu no Mão Invisível defendi que o voto em branco ou a abstenção eram perfeitamente naturais e aceitaveis, e apenas me insurgi contra a possibilidade de haver um candidato do CDS.

    http://www.maoinvisivel.com/blog/ar
    chives/2005/10/o_factor_critic.php

    Quanto ao seu comentário final, diria que é um facto que Cavaco percebess bastante de economia e infinitamente mais que SOares e Alegre. Não sendo tão liberal como o Filipe, Cavaco defende menos amarras do Estado do que as que hoje existem. Mas, em concordância, ele provavelmente chamá-las-ia de "social democratas" ou "liberais" ou "liberais-social-democratas". O discurso do que é "liberal" está um pouco gasto. Que Cavaco é bastante estatista, é um facto.

    Mas também acho que pode haver alguma incongruência quando o Filipe sugere (ainda que ironicamente) que ele devia candidatar-se a PM. Porque isso sugeriria (estou a ignorar a ironia...) que a postura face ao peso do Estado era pouco relevante para o cargo de Presidente. Ao que se seguiria que, apesar de CAvaco não ser tão liberal quanto isso, poderia ser digerível.

    De resto, eu não aprecia grandemente do que Cavaco tem de "conservador": homem de fé, com uma moral conservadora (senão puritana), de uma austeridade exagerada.

    Mas gosto que seja um "homem de família."

    By Blogger Tiago Mendes, at 8:34 da tarde  

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