aforismos e afins

03 novembro 2004

Reflexões 1 [Vida / Morte]

Claro que quando dizemos "Hoje é o primeiro dia do resto da tua (minha) vida", como canta o Sérgio Godinho, queremos dizer muito mais do que o sentido literal que as palavras contém. Contudo, e pegando no aforismo que aqui nos precede, a frase em si sugere-nos uma breve reflexão.

Que "hoje" é o "primeiro dia" do "resto da minha vida" é uma tautologia - tem de ser assim por definição. Pois se o resto da minha vida é o período que vai desde hoje até ao dia da nossa morte, o "hoje" tem que ser o "primeiro" dos dias desse "resto" [assumindo a ordem cronológica usual].

É esse "resto" que constitui uma das angústias do Homem. Sobretudo o não saber quão grande é esse período [ou seja, não saber o "quanto" falta]. Claro que há inúmeras outras angústias: qual será a causa da morte [o "como"]; a asfixia da não-imortalidade [o "porquê" dessa inevitabilidade]; a morte de outros que nos são queridos; a ideia de solidão e de decadência que [habitualmente] antecede a morte; - só para enumerar alguns. A incerteza do "quanto": de saber: será que é daqui a 20 anos? Ou amanhã, num acidente de trânsito? Será que é antes da minha "outra metade"?

"Na vida, nada se resolve, tudo continua. Permanecemos na incerteza; e chegaremos ao fim sem sabermos com que podemos contar." André Gide

Chamemos "H" ao dia de hoje. E "M" o dia da morte. O resto "R" define-se então simplesmente ela equação R = M - H. Como nós não sabemos "M", estamos perante uma variável, que segue uma determinada distribuição estatí­stica. Por exemplo, à  nascença, todos enfrentamos [excluindo factores genéticos, económicos, etc] uma distribuição cuja média é a "esperança média de vida" do paí­s onde nascemos. Mas à medida que crescemos vamos fazendo escolhas. E essas escolhas vão influenciar a distribuição do dia da nossa morte. Se fumamos ou não, se comemos bem, se fazemos desporto, etc. Ou seja, M é função duma série de variáveis: M = f(x, y, z, ...), em que x = tabaco consumido, y = número médio de horas de exercí­cio por dia, z = rácio peso/altura, etc, e f(.) é a função que "mistura" todos os ingredientes e nos dá uma distribuição de M, com determinada média e variância.

Um exemplo duma distribuição de "M" aos 40 anos poderia involver algo do género[abreviando "probabilidade" por "prob"]:
- prob[M entre 40 e 50]=10%;
- prob[M entre 50 e 60]=15%;
- prob[M entre 60 e 70]=25%;
- prob[M entre 70 e 80]=35%;
- prob[M maior que 80]=15%
(por definição as probablidades tém de somar 100%). É também de notar que a probabilidade de morrer entre os 50 e os 60 é maior para um indivíduo com 40 anos do que para um indivíduo de 5 anos - simplesmente porque o primeiro já tem 40 anos e como tal o que nós calculamos é uma "probabilidade condicionada", neste caso, condicionada no facto de ele já ter (sobre)vivido 40 anos. Para ser mais claro, um indivíduo com 110 anos de idade tem uma probabilidade (condicionada, dado ele estar vivo aos 110 anos) de morrer entre os 110 e os 115 anos provavelmente de 90% ou mais. Enquanto um recém-nascido terá cerca de 0.005% de probabiliade de morrer entre os 110 e os 115, dado que uma percentagem ínfima da população alcança tal longevidade.

"M" é uma variável muito especial, pois a sua distribuição muda necessariamente todos os dias. Se ao nascermos existe uma determinada probabilidade [ainda que pequena] de morrermos aos 2 anos, quando tivermos 5 anos, essa probabilidade é por definição zero. E quando tivermos 70, muito menos "incerteza" teremos sobre o fatal dia. É esta a ideia expressa anteriormente quando falamos de "probabilidades condicionadas". Portanto, à medida que o tempo passa a distribuição vai-se "concentrando" [i.e., vai tendo menor variância] e a partir de certa altura a morte torna-se "estatisticamente iminente", quando toda a massa probabilística se concentra num intervalo muito pequeno.

Não admira portanto que os velhos tanto falem da "velha de bengala na mão", pois se ela se vislumbra cada vez mais próxima.

"Viver é envelhecer, nada mais." Simone de Beauvoir

Hoje é o primeiro dia do resto da minha vida e amanhã - visto aos olhos de hoje - é o segundo dia do resto da minha vida [isto se eu lá chegar, claro]. Mas amanhã - do ponto de vista de amanhã, será o primeiro dia do resto da minha vida. Portanto, todos os dias tém esta mesma "propriedade", ainda que se refiram a variáveis diferentes. Porquê? Pois se M é uma variável estocástica e H é fixo (em cada dia), R = M - H é também uma variável estocástica.

"Apressa-te a viver bem e pensa que cada dia é, por si só, uma vida." Séneca

A incerteza do R (resto)... que aliás só é incerteza porque consideramos que há uma série de factores fora do nosso controlo (como é triste exemplo os acidentes de automóvel). Mas pode deixar de ser incerto que resolvermos antecipar o dia "M"... Solução radical e irreversí­vel se bem sucedida, o que nem sempre acontece, levando-nos a pensar que tal decisão muitas vezes representa apenas um pedido de ajuda).

"Não é que o suicídio seja sempre uma loucura. (...) Mas, em geral, não é num acesso de razão que nos matamos." Voltaire

Perguntará o leitor "E então? Qual é a conclusão?". Eu respondo, simplesmente, que não tem que haver conclusão. Não tem que haver sempre resposta. Duvidar por vezes é o bastante para nos alimentarmos. E assim também preenchermos parte desse "R", e ainda que pensemos nele ao escrevermos isto, um sorriso desponta pelo prazer de pensar, Somente isso.

"A felicidade, isso é quando o tempo pára." Gilbert Cesbron