Crise no Governo (6)
Miguel Sousa Tavares, no Público de hoje [destaques meus]:
«Luís Campos e Cunha foi a primeira vítima a tombar em virtude desses crimes em preparação que se chamam aeroporto da Ota e TGV. Não se pode pedir a alguém que vem do mundo civil, sem nenhum passado político e com um currículo profissional e académico prestigiado que arrisque o seu nome e a sua credibilidade em defesa das políticas financeiras impopulares do Governo e que, depois, fique calado a ver os outros a anunciarem a festa e a deitarem os foguetes. Não se pode esperar que um ministro das Finanças dê a cara pela subida do IVA e do IRS, pelo aumento contínuo dos combustíveis e pelo congelamento de salários e reformas, que defenda em Bruxelas a seriedade da política de combate ao défice do Estado, e que, a seguir, assista em silêncio ao anúncio de uma desbragada política de despesas públicas à medida dos interesses dos caciques eleitorais do PS, da sua clientela e dos seus financiadores.
O afastamento do ministro das Finanças e a sua substituição por um homem do aparelho socialista é mais do que um momento de descredibilização deste Governo, de qualquer Governo. É pior e mais fundo: é um momento de descrença, quase definitiva, na simples viabilidade deste país. É o momento em que nos foi dito, para quem ainda alimentasse ilusões, que não há políticas nacionais nem patrióticas, não há respeito do Estado pelos contribuintes e pelos portugueses que querem trabalhar, criar riqueza e viver fora da mama dos dinheiros públicos; há, simplesmente, um conúbio indecoroso entre os dependentes do partido e os dependentes do Estado. Quando oiço o actual ministro das Obras Públicas - um dos vencedores deste sujo episódio - abrir a boca e anunciar em tom displicente os milhões que se prepara para gastar, como se o dinheiro fosse dele, dá-me vontade de me transformar em "off-shore", de desaparecer no cadastro fiscal que eles querem agora tornar devassado, de mudar de país, de regras e de gente.
Há anos que vimos assistindo, num crescendo de expectativas e de perplexidade, ao anunciar desses projectos megalómanos que são o TGV e o aeroporto da Ota. O mesmo país que, paulatinamente e desprezando os avisos avulsos de quem se informou, foi desmantelando as linhas férreas e o futuro do transporte ferroviário, os mesmos socialistas que, anos atrás, gastaram 120 milhões de contos no projecto falhado dos comboios pendulares, dão-nos agora como solução mágica um mapa de Portugal rasgado de TGV de norte a sul. Mas a prova de que ninguém estudou seriamente o assunto, de que ninguém sabe ao certo que necessidades serão respondidas pelo TGV, é o facto de que, a cada Governo, a cada ministro que muda, muda igualmente o mapa, o número de linhas e as explicações fornecidas. E, enquanto o único percurso que é economicamente incontestável - Lisboa-Porto - continua pendente de uma solução global, propõe-nos que concordemos com a urgência de ligar Aveiro a Salamanca ou Faro a Huelva por TGV (quantos passageiros diários haverá em média para irem de Faro a Huelva - três, cinco, sete mais o maquinista?).
Quanto ao aeroporto da Ota, eufemisticamente baptizado de Novo Aeroporto Internacional de Lisboa, trata-se de um autêntico crime de delapidação de património público, um assalto e um insulto aos pagadores de impostos. Conforme já foi suficientemente explicado e suficientemente entendido por quem esteja de boa-fé, a Ota é inútil, desnecessário e prejudicial aos utentes do aeroporto de Lisboa. E, como o embuste já estava a ficar demasiadamente exposto e desmascarado, o Governo Sócrates tratou de o anunciar rapidamente e em definitivo, da forma lapidar explicada pelo ministro das Obras Públicas: está tomada a decisão política, agora vamos realizar os estudos. (...)
O negócio do aeroporto é tão obviamente escandaloso que não se percebe que os candidatos à Câmara de Lisboa não façam disso a sua bandeira de combate eleitoral e que, à excepção de Carmona Rodrigues, ainda nem sequer se tenham manifestado contra. Carrilho já se sabe que não pode, sob pena de enfrentar o aparelho socialista e os interesses a ele associados, mas os outros têm obrigação de se manifestarem forte e feio contra esta coisa impensável de uma capital se ver roubada do seu aeroporto para facilitar negócios particulares outorgados pelo Estado.
A Ota e o TGV, que fizeram cair o ministro Campos e Cunha, são um exemplo eloquente daquilo que ele denunciou como os investimentos públicos sem os quais o país fica melhor. Como o Alqueva, à beira de se transformar, como eu sempre previ, num lago para regadio de campos de golfe e urbanizações turísticas, ou os pendulares do ex-ministro João Cravinho, ou os estádios do Euro, esse "desígnio nacional", como lhe chamou Jorge Sampaio, e tão entusiasticamente defendido pelo então ministro José Sócrates. Os piedosos ou os muito bem intencionados dirão que é lamentável que não se aprenda com os erros do passado. Eu, por mim, confesso que já não consigo acreditar nas boas intenções e nos erros de boa-fé. Foi dito, escrito e gritado, que, dos dez estádios do Euro, não mais de três ou quatro teriam ocupação ou justificação futura. Não quiseram ouvir, chamaram-nos "velhos do Restelo" em luta contra o "progresso". Agora, os mesmos que levaram avante tal "desígnio nacional", olham para os estádios de Braga, Bessa, Aveiro, Coimbra, Leiria e Faro, transformados em desertos de betão e num encargo camarário insustentável, e propõem-nos um TGV de Faro para Huelva e um inútil aeroporto para servir pior os seus utilizadores, e querem que acreditemos que é tudo a bem da nação?
Não, já não dá para acreditar. O pior que vocês imaginam é mesmo aquilo que vêem. Este país não tem saída. Tudo se faz e se repete impunemente, com cada um a tratar de si e dos seus interesses, a defender o seu lobby ou a sua corporação, o seu direito a 60 dias de férias, a reformar-se aos 50 anos ou a sacar do Estado consultorias de milhares de contos ou empreitadas de milhões. E os idiotas que paguem cada vez mais impostos para sustentar tudo isto. Chega, é demais!»
«Luís Campos e Cunha foi a primeira vítima a tombar em virtude desses crimes em preparação que se chamam aeroporto da Ota e TGV. Não se pode pedir a alguém que vem do mundo civil, sem nenhum passado político e com um currículo profissional e académico prestigiado que arrisque o seu nome e a sua credibilidade em defesa das políticas financeiras impopulares do Governo e que, depois, fique calado a ver os outros a anunciarem a festa e a deitarem os foguetes. Não se pode esperar que um ministro das Finanças dê a cara pela subida do IVA e do IRS, pelo aumento contínuo dos combustíveis e pelo congelamento de salários e reformas, que defenda em Bruxelas a seriedade da política de combate ao défice do Estado, e que, a seguir, assista em silêncio ao anúncio de uma desbragada política de despesas públicas à medida dos interesses dos caciques eleitorais do PS, da sua clientela e dos seus financiadores.
O afastamento do ministro das Finanças e a sua substituição por um homem do aparelho socialista é mais do que um momento de descredibilização deste Governo, de qualquer Governo. É pior e mais fundo: é um momento de descrença, quase definitiva, na simples viabilidade deste país. É o momento em que nos foi dito, para quem ainda alimentasse ilusões, que não há políticas nacionais nem patrióticas, não há respeito do Estado pelos contribuintes e pelos portugueses que querem trabalhar, criar riqueza e viver fora da mama dos dinheiros públicos; há, simplesmente, um conúbio indecoroso entre os dependentes do partido e os dependentes do Estado. Quando oiço o actual ministro das Obras Públicas - um dos vencedores deste sujo episódio - abrir a boca e anunciar em tom displicente os milhões que se prepara para gastar, como se o dinheiro fosse dele, dá-me vontade de me transformar em "off-shore", de desaparecer no cadastro fiscal que eles querem agora tornar devassado, de mudar de país, de regras e de gente.
Há anos que vimos assistindo, num crescendo de expectativas e de perplexidade, ao anunciar desses projectos megalómanos que são o TGV e o aeroporto da Ota. O mesmo país que, paulatinamente e desprezando os avisos avulsos de quem se informou, foi desmantelando as linhas férreas e o futuro do transporte ferroviário, os mesmos socialistas que, anos atrás, gastaram 120 milhões de contos no projecto falhado dos comboios pendulares, dão-nos agora como solução mágica um mapa de Portugal rasgado de TGV de norte a sul. Mas a prova de que ninguém estudou seriamente o assunto, de que ninguém sabe ao certo que necessidades serão respondidas pelo TGV, é o facto de que, a cada Governo, a cada ministro que muda, muda igualmente o mapa, o número de linhas e as explicações fornecidas. E, enquanto o único percurso que é economicamente incontestável - Lisboa-Porto - continua pendente de uma solução global, propõe-nos que concordemos com a urgência de ligar Aveiro a Salamanca ou Faro a Huelva por TGV (quantos passageiros diários haverá em média para irem de Faro a Huelva - três, cinco, sete mais o maquinista?).
Quanto ao aeroporto da Ota, eufemisticamente baptizado de Novo Aeroporto Internacional de Lisboa, trata-se de um autêntico crime de delapidação de património público, um assalto e um insulto aos pagadores de impostos. Conforme já foi suficientemente explicado e suficientemente entendido por quem esteja de boa-fé, a Ota é inútil, desnecessário e prejudicial aos utentes do aeroporto de Lisboa. E, como o embuste já estava a ficar demasiadamente exposto e desmascarado, o Governo Sócrates tratou de o anunciar rapidamente e em definitivo, da forma lapidar explicada pelo ministro das Obras Públicas: está tomada a decisão política, agora vamos realizar os estudos. (...)
O negócio do aeroporto é tão obviamente escandaloso que não se percebe que os candidatos à Câmara de Lisboa não façam disso a sua bandeira de combate eleitoral e que, à excepção de Carmona Rodrigues, ainda nem sequer se tenham manifestado contra. Carrilho já se sabe que não pode, sob pena de enfrentar o aparelho socialista e os interesses a ele associados, mas os outros têm obrigação de se manifestarem forte e feio contra esta coisa impensável de uma capital se ver roubada do seu aeroporto para facilitar negócios particulares outorgados pelo Estado.
A Ota e o TGV, que fizeram cair o ministro Campos e Cunha, são um exemplo eloquente daquilo que ele denunciou como os investimentos públicos sem os quais o país fica melhor. Como o Alqueva, à beira de se transformar, como eu sempre previ, num lago para regadio de campos de golfe e urbanizações turísticas, ou os pendulares do ex-ministro João Cravinho, ou os estádios do Euro, esse "desígnio nacional", como lhe chamou Jorge Sampaio, e tão entusiasticamente defendido pelo então ministro José Sócrates. Os piedosos ou os muito bem intencionados dirão que é lamentável que não se aprenda com os erros do passado. Eu, por mim, confesso que já não consigo acreditar nas boas intenções e nos erros de boa-fé. Foi dito, escrito e gritado, que, dos dez estádios do Euro, não mais de três ou quatro teriam ocupação ou justificação futura. Não quiseram ouvir, chamaram-nos "velhos do Restelo" em luta contra o "progresso". Agora, os mesmos que levaram avante tal "desígnio nacional", olham para os estádios de Braga, Bessa, Aveiro, Coimbra, Leiria e Faro, transformados em desertos de betão e num encargo camarário insustentável, e propõem-nos um TGV de Faro para Huelva e um inútil aeroporto para servir pior os seus utilizadores, e querem que acreditemos que é tudo a bem da nação?
Não, já não dá para acreditar. O pior que vocês imaginam é mesmo aquilo que vêem. Este país não tem saída. Tudo se faz e se repete impunemente, com cada um a tratar de si e dos seus interesses, a defender o seu lobby ou a sua corporação, o seu direito a 60 dias de férias, a reformar-se aos 50 anos ou a sacar do Estado consultorias de milhares de contos ou empreitadas de milhões. E os idiotas que paguem cada vez mais impostos para sustentar tudo isto. Chega, é demais!»
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