A parede
A vida é um longo, e talvez interminável, período escolar, com diversas matérias e inúmeros mestres, e aprendemos tudo, e contudo não aprendemos nada. Cometemos sempre os mesmos erros, como se estivéssemos programados para eles. Voltamos aos mesmos lugares, inventamos as mesmas situações, desejamos as mesmas coisas - e no entanto gostaríamos que existisse outra coisa, outro campo de possibilidades, outra alegria mais simples. Mas somos cegos para ela, como os outros são cegos para a nossa.
Podemos imaginar, como tantas vezes o fiz, que existem situações de transparência e envolvimento de um dentro do outro em nós cada vez mais apertados. E existem, eu sei que existem. Eu vivi esse modo de existir. Mas, ao mesmo tempo, sempre tive a ilusão de que pelo facto de existirem, e de serem de tal modo intensos e siderantes, eles pertenciam à eternidade. O meu erro estava em pensar que era possível que eles durassem sempre, porque só assim existiam verdadeiramente, e eu estava a sentir que existiam verdadeiramente.
Não julgo que ninguém de bom senso acredite que na vida política, ou mesmo na vida profissional, se possa imaginar um ideal de transparência. Quando fui fazer a minha experiência diplomática em Paris, alguém me disse: "olhe que a diplomacia é concreta, discreta e secreta". E Julian Freund afirmava que "a sinceridade não é uma virtude pública". Tudo se iria desmoronar se os homens políticos fossem inteiramente sinceros - tal como se desmoronava também se eles fossem inteiramente falsos. Mas no plano privado, pode-se pensar que a sinceridade absoluta é uma virtude. Mas tal como podemos defender que a democracia é um valor superior ao da verdade (tese de Richard Rorty), talvez se deva dizer que a felicidade é superior à sinceridade: como Nietzsche explicou, cada um de nós é feito de verdade e ilusão, e a arte é essa forma luminosa de ilusão que nos permite resistir à verdade.
A transparência implica o desarme - mas raramente dois desarmam ao mesmo tempo. E seria um erro pensar que o facto de um se desarmar perante o outro faria que esse outro desarmasse também. Por vezes a situação de vulnerabilidade acicata no outro o desejo de vencer. E assim temos a grande linha de tragédia entre os homens: os estados de iminente transparência transformam-se num jogo de massacre, numa batalha campal. As metáforas guerreiras são aqui imprescindíveis. E nenhum apelo que se faça tem escuta do lado oposto. Era preciso que houvesse um só lado e dois corpos entregues à nudez do desconhecido. Lacan tinha um curioso jogo de palavras: transformava "l"amour" em "le mur". O que nos sufoca é este sentimento de que, como num conto de Edgar Poe, estamos definitivamente emparedados.
O meu erro, aquele de que farei a minha verdade até à morte, é o de que em determinadas circunstâncias é possível atingir o outro e tocar-lhe naquilo que ele tem de mais íntimo, secreto e criança. Por vezes apetece-nos pegar em alguém pela garganta da angústia e absorver-lhe a própria respiração. Existirá uma palavra mágica? Só que o outro não está onde julgamos que ele está. Ou está, e nós fomos condenados a não o ver?
A beleza poderá ser o que não tem a ver com a aparência, mas, sim, o que numa pessoa vem sinalizar a sua capacidade de se deixar olhar e mergulhar em transparência. Isto na paixão, claro, mas também na amizade. Porque a diferença entre a paixão desmedida, a medida do amor quotidiano, feito de gestos tão pequenos que por vezes são invisíveis, e o nó denso da amizade, vai-se esbatendo com o tempo - e isso nós conseguimos aprender. Em dada altura temos todos a mesma idade - se quisermos. A dada altura o amor rodeia-nos por todos os lados. Estendo o braço e espero, na ausência da tua mão, as mãos numerosas e quentes que suportam a queda.
Artigo de Eduardo Prado Coelho, publicado no PÚBLICO de hoje.
Podemos imaginar, como tantas vezes o fiz, que existem situações de transparência e envolvimento de um dentro do outro em nós cada vez mais apertados. E existem, eu sei que existem. Eu vivi esse modo de existir. Mas, ao mesmo tempo, sempre tive a ilusão de que pelo facto de existirem, e de serem de tal modo intensos e siderantes, eles pertenciam à eternidade. O meu erro estava em pensar que era possível que eles durassem sempre, porque só assim existiam verdadeiramente, e eu estava a sentir que existiam verdadeiramente.
Não julgo que ninguém de bom senso acredite que na vida política, ou mesmo na vida profissional, se possa imaginar um ideal de transparência. Quando fui fazer a minha experiência diplomática em Paris, alguém me disse: "olhe que a diplomacia é concreta, discreta e secreta". E Julian Freund afirmava que "a sinceridade não é uma virtude pública". Tudo se iria desmoronar se os homens políticos fossem inteiramente sinceros - tal como se desmoronava também se eles fossem inteiramente falsos. Mas no plano privado, pode-se pensar que a sinceridade absoluta é uma virtude. Mas tal como podemos defender que a democracia é um valor superior ao da verdade (tese de Richard Rorty), talvez se deva dizer que a felicidade é superior à sinceridade: como Nietzsche explicou, cada um de nós é feito de verdade e ilusão, e a arte é essa forma luminosa de ilusão que nos permite resistir à verdade.
A transparência implica o desarme - mas raramente dois desarmam ao mesmo tempo. E seria um erro pensar que o facto de um se desarmar perante o outro faria que esse outro desarmasse também. Por vezes a situação de vulnerabilidade acicata no outro o desejo de vencer. E assim temos a grande linha de tragédia entre os homens: os estados de iminente transparência transformam-se num jogo de massacre, numa batalha campal. As metáforas guerreiras são aqui imprescindíveis. E nenhum apelo que se faça tem escuta do lado oposto. Era preciso que houvesse um só lado e dois corpos entregues à nudez do desconhecido. Lacan tinha um curioso jogo de palavras: transformava "l"amour" em "le mur". O que nos sufoca é este sentimento de que, como num conto de Edgar Poe, estamos definitivamente emparedados.
O meu erro, aquele de que farei a minha verdade até à morte, é o de que em determinadas circunstâncias é possível atingir o outro e tocar-lhe naquilo que ele tem de mais íntimo, secreto e criança. Por vezes apetece-nos pegar em alguém pela garganta da angústia e absorver-lhe a própria respiração. Existirá uma palavra mágica? Só que o outro não está onde julgamos que ele está. Ou está, e nós fomos condenados a não o ver?
A beleza poderá ser o que não tem a ver com a aparência, mas, sim, o que numa pessoa vem sinalizar a sua capacidade de se deixar olhar e mergulhar em transparência. Isto na paixão, claro, mas também na amizade. Porque a diferença entre a paixão desmedida, a medida do amor quotidiano, feito de gestos tão pequenos que por vezes são invisíveis, e o nó denso da amizade, vai-se esbatendo com o tempo - e isso nós conseguimos aprender. Em dada altura temos todos a mesma idade - se quisermos. A dada altura o amor rodeia-nos por todos os lados. Estendo o braço e espero, na ausência da tua mão, as mãos numerosas e quentes que suportam a queda.
Artigo de Eduardo Prado Coelho, publicado no PÚBLICO de hoje.
7 Comments:
tb tinha gostado desse texto
andas a aprender muito?
By ana, at 4:20 da tarde
digamos que ando aprender "perto do optimo", fazendo sempre os trade-offs necessarios entre aprendizagem e outros entertenimentos. quem tem preferencias diversificadas e' mesmo assim :)
By Tiago Mendes, at 4:37 da tarde
só no final percebi que o texto não é teu. até lá chegar estava a perguntar-me: o que se estará a passar com este rapaz? estará este blog a tornar-se intimista? gostei do texto.
By kyler, at 4:17 da manhã
Boa escolha, Tiago :)
(Tb destaco essa frase, Marta)
By Anónimo, at 1:33 da tarde
Kyler: a ideia era essa, ainda bem que alguém teve uma pequena surpresa. :)
By T. M., at 1:38 da tarde
Welcome back !!! Tive montes de saudades de te "ler" :)))
By Ginja, at 9:34 da tarde
Obrigado, Ginga! É bom saber que andas por aí de vez em quando também :)
By Tiago Mendes, at 10:43 da manhã
Enviar um comentário
<< Home