aforismos e afins

01 outubro 2005

Um país de selvagens

OS POLACOS foram às urnas e eu, perdido em Cracóvia na companhia de amigos, resolvi visitar a fábrica célebre do célebre Oskar Schindler, o industrial alemão que salvou 1300 judeus da morte certa. No presente contexto, «morte certa» ganha contornos geográficos: Auschwitz-Birkenau fica a dezenas de quilómetros da cidade; e o próprio campo de Cracóvia, comandado por Amon Goeth, um psicopata que Ralph Fiennes imortalizou no filme de Spielberg, dizimou os seus milhares. Então batemos à porta e um funcionário conduz-nos por divisões e escadarias que facilmente reconhecemos do filme. A fábrica é despojada, silenciosa e digna. Como deve ser. E nós?

Nós tivemos Aristides de Sousa Mendes, que no consulado de Bordéus ofereceu a salvação possível a trinta mil criaturas, das quais dez mil eram judias. De que vale obedecer à lei dos homens quando essa lei fere uma dignidade superior? Antígona experimentou dilema igual. Conheceu fraco destino. Como, aliás, Sousa Mendes, praticamente enterrado vivo por Salazar. Não sei se o Estado português tem algum interesse em honrar um dos raros nomes que, sem exagero, não envergonham o Portugal contemporâneo. Sei que, em 1987, Sousa Mendes foi «reabilitado». Ou seja, trinta e três anos depois da morte e treze depois de Abril. Mas também sei que a casa-museu não tem pataco, a Fundação sobrevive numa espelunca, a Câmara de Lisboa recusou uma rua decente com o nome do cônsul. E uma estátua a Sousa Mendes, como já existe em Bordéus, não preocupa o «cosmopolitismo» da nossa saloiada autárquica. Tudo isto seria obviamente indigno se o país em causa se notabilizasse por uma particular dignidade.

Parte da crónica de João P. Coutinho no Expresso de hoje.

Este texto faz-me recordar uma passagem por Viena, há 5 anos, onde reparei nessa rua dedicada ao cônsul "Aristides de Sousa Mendes". Entre a vergonha pelo Portugal das homenagens "a pedido" e esquecimento dos parcos "heróis" que temos, não evitei alguma comoção ao imaginar o que teriam sido as vidas (não) salvas. Quando um país não repara (n)estas injustiças, resta a pequena homenagem de parar, reparar, e lembrar.