aforismos e afins

05 novembro 2005

Mérito, liberdade, privilégios, igualdade, endowment genético, justiça social, imparcialidade, Nozick, Darwin, Rawls, ...

«Somos tão responsáveis por sermos inteligentes como de sermos estúpidos. Não devemos orgulhar-nos mais de uma coisa do que corar pela outra.» [Paul Léautaud]

Não deve haver questão mais difícil que a «justiça». O António responde à Susana, para quem o mérito só constituiria argumento válido se houvesse igualdade à partida - isto é, nos genes que cada um tem. E a evolução, que papel tem nisto? A evolução não é moral, já o disse Dawkins, e por isso não é lícito dizer que os seus resultados são justos ou injustos. Pelo menos dum ponto de vista procedural. Mas também é verdade que cada um de nós não tem qualquer mérito nos genes que herda - já o problematizei aqui. [O Timshel na altura deu algum seguimento a isto]. É preciso sabermos separar o problema ontológico do problema ligado à sua (eventual) implementação. A bem da honestidade intelectual.

Hayek tem razão quando afirma que «Equality before the law and material equality are therefore not only different but are in conflict with each other; and we can achieve either the one or the other, but not both at the same time». Então, como deveremos lidar com as desigualdades genéticas à partida - no início da corrida que é a vida? Por um lado, é uma violação negar transferências passadas que se deram de forma livre entre indivíduos. Por outro, os que vivem (em cada momento) não podem reinvindicar qualquer mérito nesse passado. Será que deveria haver um imposto sucessório de 100%? Mesmo que houvesse, os genes fariam a diferença. Será que o homem deveria, então, anular (ou reduzir) as consequências do processo natural de evolução? Para já, ficam as perguntas.

9 Comments:

  • Não é tanto a evolução, o que me parece colocar a questão relevante, mas o acidente genético que cada um de nós é, juntamente com a questão de se existe, ou não, uma hierarquia humana (a que respondo "não").
    Mas a minha principal insistência é no que se entende (subentende!) por "mérito" quando utilizamos o mérito como critério legitimador da distinta alocação de vantagens. As qualidades meritórias transmitem necessariamente uma visão do indivíduo e é nessa visão que fica logo tudo jogado. É o "pleonasmo" de que falo no meu post aqui lincado.

    By Blogger Susana Bês, at 4:48 da tarde  

  • E ainda, a propósito desta afirmação "A evolução não é moral, já o disse Dawkins, e por isso não é lícito dizer que os seus resultados são justos ou injustos".
    Estou óbvia, total e incondicionalmente de acordo.
    Justo e injusto são atributos humanos, sociais, políticos. São totalmente "não naturais", tal como integralmente "não natural" é o indivíduo humano e a sua representação para efeitos da definição de uma qualquer bitola do justo.

    By Blogger Susana Bês, at 4:54 da tarde  

  • Mas, Susana, os nossos genes não são assim tão "acidentais", dado que provém dos nossos progenitores. Esse é o ponto da "evolução". Quando nascemos, os nossos genes não são totalmente aleatórios.

    Eu substituiria "vantagens" por "resultados". E evitaria a palavra "alocação", exactamente porque (acho eu) estamos a falar do paradigma dua sociedade liberal, numa economia de mercado. Logo, os resultados resultam de trocas livres e não de "alocações" impostas por alguém.

    Mas eu compreendo e subscrevo em parte a interrrogação da Susana: que mérito terá alguém que nasce mais capaz em obter melhores resultados do que alguém que nasce menos capaz? Recordo o aforismo com o qual eu tentei motivar esta discussão há tempos:

    «Somos tão responsáveis por sermos inteligentes como de sermos estúpidos. Não devemos orgulhar-nos mais de uma coisa do que corar pela outra.» [Paul Léautaud]

    (Vou juntar ao post).

    A questão é como lidar com essa inevitabilidade. O que é que a Susana preconiza especificamente? Do que li, parece-me que a questão que a interessa mais é a ´conceptual e não prática, o que é inteiramente legitimo (e miuto oportuno, de resto, porque é habitual confundirem-se as duas, que acho que foi o que o António, sem má intenção, fez).

    By Blogger Tiago Mendes, at 4:56 da tarde  

  • Em relação ao seu segundo comentário, julgo que o interessante é partir daí para o argumento de Nozick: se as trocas se derem livremente, em que sentido é que poderemos achar que o "resultado" é injusto?

    De qualquer forma, eu julgo que há muita gente para quem o resultado da evolução seria passível de ser chamado de "imoral", ou pelo menos "injusto". Porque seria o resultado da "lei do mais forte", etc.

    By Blogger Tiago Mendes, at 4:58 da tarde  

  • "o argumento de Nozick: se as trocas se derem livremente, em que sentido é que poderemos achar que o "resultado" é injusto?"

    O problema é que para determinarmos se as trocas se dão livremente, já temos que ter uma definição prévia de "justiça".

    Um exemplo: imaginemos que eu uso um software patenteado, e "aceitei" pagar uma dada quantia ao dono da patente para isso. Agora, a questão: esta troca deu-se livremente? A resposta depende de que direitos de propriedade achamos justos. Para alguém que seja a favor da "propriedade intelectual", claro que é uma troca livre. Para alguém que seja contra a PI, trata-se de "uma extorsão assente no poder do Estado" - afinal, eu "aceitei" pagar os royalties porque sou legalmente obrigado a isso para poder usar o tal software, da mesmo forma que "aceito" pagar o imposto petrolifero quando ponho gasolina.

    E poderemos multiplicar os exemplos: um camponês sem terras que aceita pagar uma renda a um latifundiário. É uma transação livre ou não? Se considerarmos que o latifundiário é o legitimo propriatário das terras, é uma transação livre. Mas, p.ex., para um georgista, que acredite que toda a gente tem igual direito aos recursos naturais, esa renda não passa de um imposto com outro nome, e o latifundiário não é mais que um mini-governo.

    Outro exemplo: o contrato de trabalho entre um operário e um industrial. É uma troca livre ou não? De novo, para quem aceite a propriedade do industrial sobre a fábrica, é um acordo livre; mas para um comunista ou um anarco-sindicalista, que achem que os "meios de produção" pretencem legitimamente à comunidade, o acordo não é livre - afinal, que direito tem o industrial de impor condições a quem quer usar uma fábrica que, "moralmente", pertence a toda a gente?

    O que é que eu quero dizer com esta conversa toda? Que não podemos dizer "Estes direitos de propriedade são justos porque resultam de trocas livres", já que, para definirmos se as trocas são "livres" ou não, temos que, previamente, definir se os direitos de propriedade são justos ou não.

    By Anonymous Anónimo, at 2:30 da manhã  

  • "para definirmos se as trocas são "livres" ou não, temos que, previamente, definir se os direitos de propriedade são justos ou não."

    Ou, talvez melhor, se os direitos de propriedade devem existir ou não. Percebo o teu argumento e tenho que concordar que ele é logicamente coerente. E agradeço a nota. Escusado será dizer que discordo em absoluto com as permissas de qualquer dessas filosofias para as quais o direito de propriedade é puramente ex-post, e desligado do "processo" que levou à acumulação de riqueza. Acho que o erro de todas essas filosofias vem de não entenderem a forma como "evolui" uma sociedade originalmente livre, e sem Estado. A propriedade é basicamente uma instituição que melhora o bem-estar de todos nessa situação (voltamos a Hobbes). E as trocas que se dão entre duas pessoas são de facto livres, no sentido em que a acumulação de propriedade satisfez regras que têm de ser consideradas justas.

    By Blogger Tiago Mendes, at 10:46 da manhã  

  • "Ou, talvez melhor, se os direitos de propriedade devem existir ou não."

    Não necessariamente. Pode haver pessoas que defendam a existência de direitos de propriedade "abstratos", mas considerem ilegitimos os direitos de propriedade concretamente existentes ilegitimos.

    P.ex., nos anos 60/70, Murray Rothbard e os seus discipulos (super-defensores do direito de propriede)defendiam a ocupação de universidades privadas pelos estudantes nos EUA e a reforma agrária na América Latina, argumentando que os direitos de propriedade dessas escolas e desses proprietários tinham sido criados pela força do Estado (seja através de subsidios, ou da conquista militar num passado distante). Ou seja, também para eles, os contratos entre os estudantes e as escolas ou entre os camponeses e proprietários eram não-livres.

    "E as trocas que se dão entre duas pessoas são de facto livres, no sentido em que a acumulação de propriedade satisfez regras que têm de ser consideradas justas."

    Mas assim, qualquer regra que se adopte à partida é "justa": tão justa será uma sociedade liberal como georgista ou anarco-sindicalista, se tiver sido essa a regra adoptada desde o inicio dos tempos.

    Claro, que todas estes teses sobre a "imaculada concepção da propriedade" esbarram com o facto que, em quase nenhuma sociedade existente, a actual distribuição da propriedade surgiu assim - ouve sempre conquistas, feudalismos, etc, pelo meio

    By Anonymous Anónimo, at 1:05 da tarde  

  • "Mas assim, qualquer regra que se adopte à partida é "justa": tão justa será uma sociedade liberal como georgista ou anarco-sindicalista, se tiver sido essa a regra adoptada desde o inicio dos tempos."

    O problema está mesmo aí: no facto de essa eventual possibilidde não ser, quanto a mim, "natural". Pode haver excepções em pequenas comunidades que resolvam impor certas regras, mas não passarão de excepções.

    "Claro, que todas estes teses sobre a "imaculada concepção da propriedade" esbarram com o facto que, em quase nenhuma sociedade existente, a actual distribuição da propriedade surgiu assim - ouve sempre conquistas, feudalismos, etc, pelo meio"

    Exacto. Isto em parte reforça o (meu) ponto anterior, mas também tem que ser mitigado pelo facto de essas contruções sociais se basearem em parte nos privilégios. O meu ponto é que a "lei natural" nãp pode ser qualquer daquelas que tu apontas. Isso são "reacções" a uma lei natural que eles não aceitam.

    By Blogger Tiago Mendes, at 1:10 da tarde  

  • Imagina que um grupo de naúfragos chega a uma ilha deserta. Algures na ilha há uma pequena fonte, que deita alguma água. Como dividir a água?

    Solução liberal (ou, pelo menos, defendida por alguns liberais): o primeiro a beber água torna-se propriétario da fonte, podendo, a partir daí, proibir os outros de beber lá, ou obrigá-los a pagar por isso

    Solução socialista/georgista: dividir igualitariamente a água, estabelecendo o grupo, se necessário, regras do género "ninguém pode beber mais que X litros/dia"

    Não vejo porque é que uma das soluções há-de ser mais "natural" que a outra. Ou melhor, até suspeito que, num cenário real, os naufragos até iriam tender, espontanemente, para a solução socialista/georgista

    By Anonymous Anónimo, at 4:46 da tarde  

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