aforismos e afins

20 julho 2005

«A velhice da Gulbenkian»

Excelente artigo de Clara Ferreira Alves aqui em baixo.

1 Comments:

  • «Tenho pena. O Ballet Gulbenkian fez parte da minha educação cultural. Lembro-me de muitas coisas que eles fizeram, do consulado longo e produtivo do Jorge Salavisa, das estreias da Olga Roriz, do trabalho do Vasco Wellenkamp, de bailarinos cheios de graça, como o Francisco Rousseau, das aventuras do Ricardo Pais ao som dos Lounge Lizards. Lembro-me que por ali passaram ou criaram nomes como Rui Horta, João Fiadeiro, Vera Mantero, nomes importantes para a dança em Portugal. E muitos outros, não poderia nomeá-los todos, nem nomear tudo o que vi feito e dançado pelos bailarinos da Gulbenkian, quando a Fundação Gulbenkian era para nós, lisboetas, para nós, portugueses, o que de melhor havia em Portugal.

    Devo à Gulbenkian, e a todos os que construíram e dirigiram a Fundação, ter visto e sentido, ter experimentado, ter contemplado, exposições, concertos, espectáculos, cinema, conferências, retrospectivas. Jazz, música clássica, dança contemporânea, arte antiga, arte moderna, sei lá, um milhão de sensações e aprendizagens que teria de ir buscar ao estrangeiro porque, nesta matéria, o Estado português sempre foi deficitário e descansou sobre o colchão do mecenas. Uma exposição de Rodin, quando eu andava no liceu, iniciou-me nos prazeres da Gulbenkian. E, pela vida fora, muito de tudo: as Grandes Orquestras, Ivo Pogorelich a tocar, e assassinar, o Op. 111 de Beethoven, o virtuosismo de Pollini, Brendel, Argerich, Kissin, Rostropovich, entre tantos. O ciclo John Ford em parceria com a Cinemateca. Eu sei lá. À Gulbenkian devemos o que vimos no Acarte, devemos o Centro de Arte Contemporânea onde o Fernando Calhau teve a sua retrospectiva antes de morrer, devemos um inesquecível Garbarek a tocar debaixo das estrelas de Verão.

    Há semanas, vi na Gulbenkian a magnífica exposição dos 7.000 anos de Arte Persa, e a exposição lateral, e não menos magnífica, dos tapetes islâmicos, uma das minhas paixões. Visitei, pela enésima vez, o Museu, a colecção mais extraordinária de objectos, preciosidades, telas, que alguém pode dar a um país. Da cerâmica Iznik às esculturas, do poema a Veneza que são os Guardi da Gulbenkian às subjectividades do coleccionismo ecléctico. Nas tardes de estudo, os estudantes invadem os jardins da Fundação, espalham-se pelas avenidas, namoram entre os arbustos e os livros.

    Secreta e institucional, a Gulbenkian não se dá em espectáculo, dá espectáculos. Podemos questionar a sua política cultural, ou podemos questionar a nossa política cultural, a de um Estado que considera a cultura um acessório caro, mas o que não podemos deixar de concluir é que o modo como o Ballet Gulbenkian foi extinto, de um dia para o outro, é um modo brutal e deselegante, pouco consentâneo com a tradição da Fundação. Tanto mais que as pessoas da Gulbenkian, Rui Vilar, Teresa Patrício Gouveia, Rui Vieira Nery, não fazem parte dos deselegantes deste país, nem se caracterizam pelo «método americano» da extinção, mais conhecido por extermínio. O que se passou? Admito que a decisão de extinguir tenha sido duramente ponderada mas, ninguém «lá de cima» parece ter tido a coragem de enfrentar os bailarinos e o próprio director do Ballet, Paulo Ribeiro. Lendo o texto de Alexandra Lucas Coelho na revista «Pública», faço minhas as perguntas dela, que são as dos bailarinos: «Por que não se convocou toda a companhia para fazer o anúncio? Por que se permitiu que alguns soubessem pelos «media»? Porquê agora, com a temporada programada? Por que não veio o Presidente da Fundação (Rui Vilar) cá abaixo? Por que não há um agradecimento da administração?» Os responsáveis do serviço de Música, Luís Pereira Leal, Rui Vieira Nery e Miguel Sobral Cid entraram e o primeiro leu o comunicado da Administração. Não conseguiu acabar, começou a chorar. Acabou Rui Vieira Nery. «Todos os espectáculos previstos, incluindo seis estreias absolutas, ficaram sem efeito. Os bailarinos deveriam dirigir-se aos recursos humanos para serem informados sobre reformas antecipadas, indemnizações, compensações». Fim de citação.

    Esta não é a Fundação Gulbenkian que eu conheci. E, já que falamos nisso, a Fundação Gulbenkian que eu conheci está um bocado frouxa. Um suave perfume de decadência e velhice e entorpecimento a invade. A música clássica continua a chegar mas, nos jardins e dentro dos edifícios e museus, não vejo a vida, a actividade, a alegria, a modernidade, o cosmopolitismo que vejo, por exemplo, em Serralves. Falta qualquer coisa nesta Fundação Gulbenkian, não sei o que é, mas não é o que eu gostaria de ver e frequentar. O público dos concertos clássicos estagnou num pequeno mundo em que toda a gente se conhece e se cumprimenta, a elite de Lisboa. Poucos, raros, jovens. Pouca, rara, abertura. E frescura. O CAC não me atrai. As conferências internacionais que tanta gente atraíam, e onde passaram tantos nomes, não as tenho visto nem lembrado. E as noites dos jardins, a música de Verão, não ouço falar dela. É provável que o Ballet também já não fosse o que foi, a verdade é que há muito tempo que não ia lá mas a culpa será do Ballet ou dos Serviços da Fundação, que não parecem animados da vida e das artes doutros tempos? Um diáfano manto de silêncio cobre a Gulbenkian. Se não se renovar, a Gulbenkian envelhece, e é o que está a acontecer. Desde o tempo de Ferrer Correia que se vê a Gulbenkian a fossilizar, e por isso depositei tantas esperanças na entrada de Rui Vilar. A extinção brutal e exterminadora, sem respeito pelas pessoas e pelos artistas que ali trabalharam e dançaram, é um acto inesperado e seco, um desapontamento. A Gulbenkian não é o deficitário Estado português, nem obedece às contas dos senhor ministro das Finanças. A Fundação Gulbenkian foi a instituição que mais respeitei e admirei em Portugal, e tem obrigações e tradições nesse domínio. A Gulbenkian não é dirigida por autodidactas e espertalhões e sim gente competente, culta e séria. Por favor, não façam isto, ou, se fizerem, não façam isto assim. Honrem a memória do cavalheiro arménio, aliás, o único homem que enriqueceu com o petróleo iraquiano e devolveu parte dos lucros à humanidade. O único.»

    By Blogger T. M., at 4:42 da tarde  

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