Liberalismo, Moral e Costumes (2)
Vale a pena recordar que a palavra «liberal» é um pouco mais rica em significado do que nos querem fazer crer alguns participantes nos debates acalorados que por aí abundam:
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L I B E R A L
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Adjectivo, 2 géneros
1. que gosta de dar; generoso;
2. tolerante; largo de espírito;
3. que é partidário da liberdade política, económica, religiosa, etc.;
4. que convém a um homem livre;
5. diz-se da profissão de carácter intelectual e independente;
Adjectivo, 2 géneros
1. que gosta de dar; generoso;
2. tolerante; largo de espírito;
3. que é partidário da liberdade política, económica, religiosa, etc.;
4. que convém a um homem livre;
5. diz-se da profissão de carácter intelectual e independente;
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Substantivo, 2 géneros
1. POLÍTICA aquele que professa ideias liberais;
2. partidário do liberalismo;
Substantivo, 2 géneros
1. POLÍTICA aquele que professa ideias liberais;
2. partidário do liberalismo;
[do Dicionário online da Porto Editora]
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No debate entre PM e JM sobressaem duas diferenças: 1) PM acha que o «liberalismos social» - isto é, o liberalismo enquanto forma de estar e viver em sociedade para além do Estado - precede o liberalismo político; 2) JM tem uma visão estritamente negativa relativamente à liberdade individual no que concerne aos costumes, enquanto PM advoga um pouco mais do que isso, que poderíamos chamar de visão tendencialmente... sympathetic. Para JM e outros arautos do liberalismo político, nem se pode falar na palavra liberal se não se estiver a referir ao peso do Estado. Seria a maior blasfémia possível.
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Para JM, um liberal é simplesmente aquele que admite qualquer comportamento alheio que não interfira na esfera individual do próprio. Mesmo que ache certos comportamentos «imorais» ou «condenáveis», seria um liberal apenas por defender que o Estado não tem nada com isso. Ora isto é uma visão algo redutora, que quanto a mim pacede da cegueira de interpretar a palavra liberal num sentido estritamente negativo, que é o sentido clássico do liberalismo político, bem entendido. Não defendo que um liberal seja alguém que tenha que «abraçar» todos os modos de vida; nem muito menos ser um relativista. Mas, tal como diz o dicionário, o ser liberal é também ser «tolerante, largo de espírito», e isso tem muito que se lhe diga, mesmo que a linha separadora não seja fácil de definir. Mas, quando pensamos em João César das Neves ou nos pastores evangélicos que proliferam nos EUA, valha-nos Deus se podemos chamar a tais criaturas «liberais». Isso sim seria de um relativismo absoluto.
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Em Portugal é difícil para grande parte da direita aceitar certas coisas ligadas aos «costumes», porque a marca da religião é muito forte. Como o aborto envolve um terceiro e a questão da droga é puramente individual, o tema mais interessante gira em torno dos direitos dos homossexuais. E para essa direita é sempre mais fácil dizer que certas causas são da esquerda radical e, como tal, quem as defender é porque «está do lado de lá», ou está a ser puramente estratégico, procurando «estar na moda» e «cavalgar na onda». É curioso que nestas questões tantos (ditos) liberais tenham tanta dificuldade em apontar o exemplo de países tradicionalmente «liberais» como a Inglaterra, o Canadá ou a Holanda [outro exemplo é João Carlos Espada, um belíssimo arauto da liberdade política e económica com pendor evangelista nas questões morais]. É assim tanta indiferença quanto a compreender e sobretudo referenciar o Protestantismo em relação ao Catolicismo, nestes temas mais polémicos? Parece-me que sim. E a corroborá-lo estão aí as inúmeras reacções de (ditos) liberais que se proclamam (também e) orgulhosamente «ultramontanos» (sic).
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Que há (pelo menos) uma dimensão económica e uma dimensão social na caracterização política de um indivíduo, qualquer teste o dirá. É verdade que o liberalismo (clássico) não proclama muito mais que o conhecido «faz o que quiseres, desde que isso não interfira com a liberdade dos outros». Ora, em que é que o casamento de homossexuais interfere com a liberdade dos outros? O JM dirá - como disse aqui - que interfere porque há um subsídio pago pelos solteiros, dado que o casamento envolve certas benesses financeiras. Incontestável. Mas a verdade é que os casais heterossexuais também são subsidiados e a questão está em saber se se deve manter ou não a discriminação relativamente a casais do mesmo sexo.
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Eu não quero obrigar ninguém a ser «amigável» quanto à homossexualidade ou a outras questões do foro privado. Mas, tal como há uma «disposição conservadora» (tão bem descrita por Oakeshott), também creio poder falar-se numa certa «disposição liberal» que consistiria numa certa predisposição para a tolerância, aceitação, e abertura de espírito, em lugar da condenação que tanto apraz aos senhores das religiões que prometem paraísos ou infernos. Quanto à homossexualidade ser ou não imoral, é assim:
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P1. Onde não há escolha não há moral.
P2. A orientação sexual não é uma escolha.
C1. A orientação sexual está para além da moral.
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P1 é imediatamente óbvia. P2 ainda não é óbvia para muita gente e da sua não aceitação ao longo dos tempos foi de certa forma natural ver-lhe associada um sentimento de «culpa» - próprio e alheio, sendo que o alheio resultou muitas vezes em «castigos», que foram apanágio durante séculos no Ocidente e que ainda reinam em muitos países muçulmanos, onde a homossexualidade leva à pena de morte (tal como outros «crimes sexuais»).
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Há outro mito que (ainda) reina na cabeça da maioria das pessoas, e que consiste em achar-se que a orientação sexual (OS) tem a ver com quem a pessoa se deita. Deitar-se com A ou B é uma escolha. Mas a OS não tem a ver com essa efectivação, mas sim com o que a precede, e que é a atracção que sente pelos diferentes sexos, o que não é naturalmente controlável (embora seja reprimível ou recalcável, como é sobejamente conhecido, por exemplo no caso das «fugas» de jovens mancebos para seminários à procura da redenção, que mormente desbam no cair em tentação com menores indefesos - mas isso são outras evidências estatísticas).
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Outros dois mitos maiores são que: 1) a OS está definida once and for all; e 2) que a OS é, não só descontínua como binária: ou se é 100% homossexual ou 100% heterossexual. Quanto a 1), evidência empírica abunda nas revistas cor-de-rosa e menos cor-de-rosa, e dispensa muitos comentários. Quanto a 2), começar por ler o Relatório Kinsey e afins pode dar uma ajuda às mentes que sempre gostam do preto-ou-branco, as eternas dualidades que tanta paz (supostamente) trazem à alma (o «good fellas» and «bad guys» do sr. Bush). Eu não quero obrigar ninguém a ler sobre sexualidade, mas acho curioso que alguns falem com tanto à vontade quando sabem tão pouco. Sobretudo os que são (tendencialmente) castos - caso dos padres e «afins» (os que só têm sexo para uma predisposição procriadora) - adoram falar sobre o que não têm. É um esforço enorme de «thought experiment», temos que admitir; com algo de gulodice (pelo que não têm) mas sobretudo de sacrifício (de pensar no que abominam ter).
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Felizmente que em Portugal (e não só) a dificuldade em ser imparcial abunda, e do lado dos «activistas LBGT» há essa coisa estranha do «orgulho gay». Aqui outro silogismo simples se impõe.
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P3. No que concerne à esfera individual, o orgulho requer escolha.
P2. A orientação sexual não é uma escolha.
C2. Ninguém tem direito a ter orgulho da sua orientação sexual.
P2. A orientação sexual não é uma escolha.
C2. Ninguém tem direito a ter orgulho da sua orientação sexual.
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P3 é simples. Nós podemos ter orgulho no nosso país, ou ter orgulho nos nossos pais. Este «orgulho» é mais uma forma de dizer que aceitamos com prazer e até honra o que nos foi dado. Mas no que concerne a nós mesmo, só podemos ter orgulho de algo que decorre da nossa escolha. Não podemos ter orgulho de ser altos ou ter olhos verdes. Podemos ter orgulho do curso que escolhemos, dos resultados que obtemos, do emprego, do casamento, seja do que for que pelo menos em parte tenha dependido de alguma escolha da nossa parte. Ora, sendo que a OS não é uma escolha, não dá direito a «orgulho».
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O outro ponto da questão é fácil de advinhar. Há tanto mais orgulho quanto mais difícil a escolha. Ora, na questão do «orgulho gay», o que se trata não é do orgulho em ser gay mas do orgulho em assumir-se (ou «ser perante os outros») como tal. A diferença é relevante. Numa sociedade X-fóbica, alguém assumir-se como sendo X é algo que requer coragem, porque significa enfrentar um custo social grande.
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Tal como Pacheco Pereira tem direito a orgulhar-se de ter votado a favor da lei sobre a despenalização da IVG; tal como Miguel Veiga tem direito a orgulhar-se de ter dito tudo o que pensava sobre Santana Lopes; tal como Marques Mendes tem direito a orgulhar-se de ter dito o que disse sobre Jardim e outros caciques; tal como Filipa Correia Pinto tem direito a orgulhar-se de defender as suas ideias (liberais), sendo apoiante do CDS-PP; também os que tenham OS «X» têm direito a orgulhar-se de a assumir numa sociedade X-fóbica. O traço comum a todos estes casos é o custo em assumir certa posição «contra a corrente» da sociedade e de círculos mais próximos.
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Resumindo: as palavras são o que são, e mesmo elas não são imutáveis. Sempre que se use o termo «liberal», é aconselhável explicar se nos referimos exclusivamente à dimensão política/económica ou à dimensão social/moral. Não podemos é ignorar que elas existem e não estão co-determinadas. E não temos o direito de impor o «nosso» conceito de liberal, só porque achamos (com todo o direito) que o peso excessivo do Estado é um problema muito mais importante que as polémicas do aborto, da droga, ou dos direitos dos homossexuais. O facto do grau de importância ser diverso não sanciona o descuido no uso de palavras e conceitos. E, já agora, nunca é demais ter um dicionário sempre à mão.
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PS: Ver aqui a resposta de JM a este post e a minha contra-resposta.
10 Comments:
Excelente post. Excelente
By Anónimo, at 3:01 da tarde
só agora tive tempo mental para ler este post.
muito bom. devias escrever.te mais vezes.
acho que resumes bem os teus argumentos nesta parte "Sempre que se use o termo «liberal», é aconselhável explicar se nos referimos exclusivamente à dimensão política/económica ou à dimensão social/moral. Não podemos é ignorar que elas existem e não estão co-determinadas."
a mim o que me parece é que em Pt não há um partido liberal em ambos os eixos.
(em relação ao political compass sou amiguinha do gandhi... e tu???)
(ps, consigo imaginar-te a escreveres posts à cerca de cada uma daquelas perguntas)
By ana, at 3:23 da tarde
Ja ha uns tempos que vinha pensando escrever um post sobre o assunto. Mas a falta de tempo tem falado mais alto. Interessante que em Portugal o sentido da palavra liberal seja o oposto do sentido que tem aqui nos EUA.
Aqui chamar liberal a alguem e' sinonimo de chamar esquerdista. Dizer que alguem "is really liberal", quer mesmo dizer que e' um esquerdista fanatico. Claramente aqui o termo liberal esta' associado ao lado social e nao ao lado economico. Os liberais sao, grosso o modo, os que defendem as minorias, legalizacao de drogas, atitudes menos rigidas em relacao a casamentos. Agora tambem comeca a estar na moda o vegetarianismo como atitute liberal (defesa dos animaizinhos). Alias e' dificil ter mais gozo do que discutir com um americano sobre as touradas... (seja liberal ou conservador)
By Anónimo, at 4:58 da tarde
Bom, falar sobre touradas dava pano para mangas! Imagino nos states... abraço.
By T. M., at 8:57 da tarde
Muito bom mesmo, o post.
By Pedro Santos Cardoso, at 9:21 da tarde
A orientação sexual não é uma escolha!!!! Custa-me a crer nessa preposição. (ou se quiseres parte da orientação sexual é escolha)
Até admito que a escolha da orientação sexual faça alterar certos padrões cerebrais, fazendo com que certos testes científicos digam que existe uma padrão cerebral diferente. O que não implica que se existe o ultimo - certos padrões cerebrais reagem de uma forma diferente do normal (associado ao género do ser) (sociedade vigente), que está implícito que é genético, imutável.
Mas acho que fizeste bem em separar entre a escolha do parceiro e o género do parceiro. Isso ajuda a separar as águas.
Também gostei de teres dito sobre a questão do 100% homosexual/heterosexual. Isso ajuda muito o raciocínio.
Mais uma vez acho que estiveste bem em frisar que o orgulho em ser gay ser entendido como o orgulho em assumir-se (ou «ser perante os outros»). Mas neste campo devo pôr alguns travões, sobre a forma de expressão do orgulho. Que pode chegar á imposição.! (não foste por este campo mas acho que até deverias ter dado uma achega)
Em relação á preposição onde não há escolha não há moral. Essa também tem que se diga. E também acho que não é assim tão clara. Mas irei desenvolver melhor…
Tenho de ir..
abraços
By Anónimo, at 6:06 da tarde
muito bem...
By kyler, at 11:19 da tarde
Pedro Santos Cardoso: obrigado pela atenção e pelo comment.
Kyler: ;)
Marta: obrigado pela sugestão de further thinking.
By T. M., at 11:30 da tarde
Joãodaveiro: fico à espera duma resposta tua mais arquitectada para poder responder apropriately :)
Sem pressas, como sempre. Just if it flows. Abraço.
By T. M., at 12:57 da manhã
Retomo o meu discurso:
Demonstração da falácia da P1: onde não há escolha não há moral.
Se eu partir de uma situação onde a minha moral e a minha rede de princípios, convicções, regência racional estiverem definidas. E agora se me transportarem para um situação onde não tenho escolha possível. A minha moral prevalece. (mesmo obrigado a realizar algo posso proferir os meus juízos de valor. Ou não? E como no decorrer da vida essa moral é dinâmica e não estática. Se bem que com o decorrer da vida, a dinâmica da moral será em “retoques”, o que significa que era necessário um período de tempo longo, ou extremamente traumático para derrubar a minha moral.
Agora se eu partir de uma situação onde a minha moral não está formada, e cresço numa situação onde não há escolha, isso não impede a criação da moral?
Ainda vejo uma outra possibilidade é a moralidade face a acção inexistente. Se realmente a acção ou pensamento não existe então não poderei exercer um juízo.
Se for este o campo por onde estás a ir. Referes ausência de escolha, ie, existe um só caminho e nem temos a situação de caminhar ou não caminhar. Mas sim implica a obrigatoriedade da acção.
Se temos acção ou mesmo pensamento sobre algo podemos sempre exercer a moral, como antes foi dito.
Se eu seguir a interpretação da “marta” como algo imposto por “vontade própria” estaria a abrir um precedente de inconsciência tremendo. Até poderia justificar dessa forma casos como os assassinos compulsivos…
Se me dissesses ao contrário, ie, onde não há moral não há escolha, aí concordaria contigo. Mas a relação não é biunívoca!
Demonstração da falácia da P2: a orientação sexual não é uma escolha.
Esta é muito mais difícil de explicar. Se por um lado dizes que orientação sexual não é sim ou sopas, a atracção da pessoa é independente do seu género sexual. Ou seja a atracão sexual é independente do género sexual. Nisso concordo contigo.
Mas a tua implicação de escolha não significa que seja momentânea.
Se não está definida e estática á nascença e vai sendo continuamente re-definida o que pode implica que é condicionada ou modelada. Assim sendo teremos uma possível escolha.
Epá estou a entrar em preciosismos estúpidos! Sim acho que tens razão.
Já agora explico a razão do coment anterior. Primeiro porque li a correr e não tinha ficado com a ideia que achavas que a orientação sexual é dinâmica temporalmente pelo contrário. Depois devido á exposição da noticia de que os “cérebros dos homosexuais reagem como os de mulheres”, o que para alguns entenderam a noticia como algo genético e imutável. E estava a crer que era exactamente esse o teu.
Desculpa. Retiro o que disse.
Está brilhante a proposição 3 “o orgulho requer escolha (no que concerne à esfera individual)”
(escolha não necessariamente selecção do caminho mas imperativamente a acção do caminho)
Joãodaveiro
By Anónimo, at 2:42 da manhã
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