aforismos e afins

31 outubro 2005

Por uma sociedade mais liberal

Caro António: acho que sabes que concordo quase na íntegra com as intenções que descreves. A nossa Constituição de inspiração socialista tem partes que seriam perfeitamente risíveis se não fossem verdade. E os entraves a mudá-la são muitos, e extremamente poderosos. E é por isso que, quando te referes ao que escreveu o ENP - «defender acerrimamente a diminuição do Estado e a eliminação dos entraves constitucionais que a impedem» - eu optaria por substituir o advérbio de modo por outro que julgo mais valioso: inteligentemente. Porque a força das convicções não está em causa. O que importa realmente é perceber como fazer as coisas de para que algo mude de facto, como tu igualmente referes no final do teu post.

Também a propósito do que citaste do RAF - «o corpo central do ideário liberal está, cada vez mais, na ordem do dia, e começa a apresentar-se como verdadeira alternativa e solução credível para os problemas estruturais que o país enfrenta» - relembro o olhar lúcido do Manuel Pinheiro. O que se vê hoje em dia na blogosfera e cada vez mais nos jornais é não só motivo de alegria como tem reconhecidamente um impacto cada vez maior no debate político. Aquilo que me preocupa é que apesar de tudo esta "onda" ainda me parece pouco representativa no "país real": aquele que vota segundo o sistema eleitoral vigente. Por isso, parece-me necessário ter os pés bem assentes no chão e evitar certas ilusões. Se a ambição é crucial, a falta de realismo é fatal.

Certos modelos societais teóricos devem servir de inspiração para as propostas a apresentar, mas têm que ser filtrados e adaptados ao mundo que nos rodeia. O que me assuta é que certas derivas teóricas que vemos na blogosfera - inteiramente legítimas, habitualmente interessantes, e não raro soberbamente "imaginativas" - acabem por guetizar um "projecto", aniquilando a sua viabilidade. Seja por razões ligadas ao ego ou falta de visão estratégica. Por isso eu prefiro a prudência ao entusiasmo febril e facilmente contagiante. O sonho comanda a vida, é verdade.
Mas - excepção feita aos deliciosos sonâmbulos - esse comando só pode ser realmente exercido quando estamos bem acordados.

4 Comments:

  • uma visão muito clara e sem ser excessivamente apaixonada, excelente!

    By Blogger aL, at 9:58 da tarde  

  • Grazi, AL. De facto, creio que meter paixões na política não é muito indicado. Prefiro a clareza da distância e do desprendimento. Há uma coisa que falta no meu post, e que espero escrever quando tiver tempo, que é "concretizar" o tipo de "restrições práticas" que acho que se devem ter quanto a um "projecto liberal".

    Quer dizer: cada um tem direito a ter o seu. O meu pessoalmente não é demasiado próximo do dos insurgentes ou blasfemos. Por isso, nem sequer tenho que fazer grandes cedências aquilo que acho "ideal". Mas onde achar que tenho, isso provavelmente vale a pena.

    No longo prazo, estamos todos mortos, mas há muito para viver até lá. É preciso é vontade real de mudar alguma coisa, e não apenas wishful thinking a embandeirar em divaneios teóricos tipo "corrida mais louca do mundo" a ver quem consegue ser mais "liberal" e mais "puro".

    By Blogger Tiago Mendes, at 10:10 da tarde  

  • Viva Tiago,

    Obrigado pelos comentários e por este seguimento, com o qual concordo.

    Eu não tenho problemas em alinhar-me teoricamente por blasfemos, insurgentes, sinédrios, causas-liberais, ... — pese as diferenças entre os diversos pontos de vista.

    No seu conjunto, formam um corpo intelectual muito coerente e pedagógico. Julgo que se fizéssemos um "best-of" da blogosfera liberal, teríamos metade do trabalho feito para o tal "programa de Governo-sombra".

    (noção arrepiante para muitos liberais da velha escola, que vêm o liberalismo— e bem!— não como um projecto de Poder, mas sim como limitativo do Poder central.)

    Se hoje já é fácil falar de liberalismo sem proscrição— e mesmo assim o socialismo encontra-se onde menos se espera—, o espírito dominante continua a ser "mas não vamos a lado nenhum". Penso que o liberalismo tem de ultrapassar também essa barreira.

    By Blogger AA, at 12:02 da tarde  

  • Obrigado pelo comentário, António. Eu diria que a coerência é boa em si, mas também pode evidenciar um sinal perverso, de considerarmos que muitas propostas não são de todo realizáveis - assim esse "tom comum" torna-se mais handicap do que vantagem. Julgo que a diversidade aqui também é útil, para juntar uns pozinhos de "aplicabilidade" às ideias teóricas. Pedagógico é com certeza, e muito - isso concordo em absoluto. Pela minha parte tenho aprendido imenso e gostado.

    E, como referes no final, também me parece que há essa barreira por ultrapssas, o tal "paradoxo" para alguns liberais mais avessos a qualquer intervenção, mesmo se no sentido de minorar o poder do Estado face aos cidadãos.

    By Blogger Tiago Mendes, at 5:29 da tarde  

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