aforismos e afins

14 novembro 2005

Linguagem, Hermenêutica e I.A.

Paulo Dentinho disse ontem [Telejornal da RTP], a propósito de bombistas suicidas da Al-Qaeda: «Eles mataram-se matando». Não seria melhor ter dito: «Eles mataram matando-se»? Porque
o fim era matarem. O suicídio foi apenas um meio. A escolha da sequência entre o verbo reflexivo e não reflexivo reflecte-se crucialmente na interpretação do acto descrito, porque determina a intenção do sujeito e, como tal, a dimensão moral do acto.

Será que o que foi dito resultou de um posicionamento político do jornalista (consumado de forma não necessariamente consciente) ou será que se tratou de uma mera distracção formal?

Mas há mais perguntas interessantes que esta questão sugere. Conseguiria uma «máquina» interpretar as duas frases? Talvez. Será a linguagem um mero conjunto de «regras»? Não.

7 Comments:

  • Muito bem observado. Estamos tramados com os Dentinhos...

    By Blogger André Azevedo Alves, at 12:47 da manhã  

  • POis... estava aqui a ver uns essays e a ouvir a RTP e não me escapou esta imperfeição discursiva. Nem quis acreditar, sinceramente. Acho difícil aquilo não ter sido consciente porque é uma peça montada... o tipo deve ter um esquerdismo recalcado lá dentro e achar que os outros tipos que foram mortos foram meros "feitos colaterais" da vontade de se explodir por Alá, ou algo do género...

    De facto, agora que leio o teu comentário e o post, vou alterar ligeiramente o último parágrafo. Aqui fica o que escrevi originalmente para referência:

    "Mas as perguntas importantes são outras (...)".

    Mudei para: "Mas há mais perguntas interessantes que esta questão sugere."

    Porque de facto o erro (?) do jornalista merece não ser menosprezado. Embora a minha intenção inicial fosse mesmo aproveitar isto para falar do tema mais interessante ligado à filosofia da linguagem.

    By Blogger Tiago Mendes, at 1:15 da manhã  

  • Meros "feitos colaterais" nao foi tambem o que a direita de Bush chamou aos Iraquianos civis mortos durante a fase 'oficial do conflito? Para tao boa prosa, ha que manter alguma imparcialidade de analise...

    By Anonymous Anónimo, at 12:51 da tarde  

  • Caríssimo, não sabes como me agrada saber que anda por aí um outro português que também repara no (mau) uso que os jornalistas fazem da nossa Língua Portuguesa. Eu tinha esperanças de não ser o único paciente dessa doença. No entanto, normalmente eu não teorizo tanto nem busco na Hermenêutica, essa Grande, explicações para o facto. Pergunto: não teria sido apenas um erro que lhe fugiu entre os dentinhos? Quando temos duas formas verbais seguidas, não saber qual se deve conjugar na voz reflexa é um erro comum em Portugal. O interessante aqui é que a questão vai além da mera questão gramatical especialmente porque neste caso as duas formas são gramaticalmente correctas.
    Quanto á questão “Conseguiria uma «máquina» interpretar as duas frases?” penso que neste caso particular os meus colegas de computational linguistics diriam que sim, e provavelmente, as conclusões seriam mais ou menos as mesmas que as tuas no que diz respeito à intenção do sujeito actuans.
    “Será a linguagem um mero conjunto de «regras»?” se fosse nós não teríamos literatura, retórica etc. - o que tornaria o mundo ainda mais aborrecido do que já é…
    Seja como for, muito bem observado.
    RC

    By Anonymous Anónimo, at 4:46 da tarde  

  • Viva meu caro,

    A minha patria e' a lingua portuguesa, como dizia o outro, e nao consigo deixar de notar nos pontapes que se dao por ai.

    "Pergunto: não teria sido apenas um erro que lhe fugiu entre os dentinhos?"

    Sem duvida. Eu creio que a "distraccao formal" era a hipotese mais provavel. Mas achei que era um bom ponto para voltar a pegar em temas que tem estado quentes por aqui:
    - a questao das falacias argumentativas
    - a questao (filosofica) da linguagem
    - a questao (filosofico-cientifica) da Inteligencia Artificial e os seus limites.

    No fundo, o Dentinho foi um pretexto (coitado).

    Quanto aos teus amigos de computer linguistics, eu discordo que a linguagem possa ser "redutivel" a regras. Mas aqui o meu amigo Joao Galamba tem muito mais a dizer e com muito mais autoridade. Ele enviou-me um paper muito conciso e claro a explicar o porque dessa impossibilidade, que e' ontologica e nao logica.

    Neste caso a frase nao e' demasiado dificil de interpretar. Ha outros exemplos (nesse paper) que sao excelentes para compreender como o contexto e a nossa propria existencia - e sobretudo a "intencao" que nos precede - sao cruciais para interpretar certas coisas.

    Voltarei ao tema.

    Abraco,

    By Blogger Tiago Mendes, at 5:27 da tarde  

  • Numa discussao sobre a estrutura gramatical da lingua portuguesa, e sobre o correcto uso do portugues, e estranho ver tantos e tantos anglicanismos... Sera que mentes tao brilhates nao arranjam traducao para 'paper' e 'computational linguistics'?!

    By Anonymous Anónimo, at 6:27 da tarde  

  • Não me leve a mal,caro amigo anonymous, mas uma ou outra palavra inglesa no meio de um texto em português não me choca tanto quanto o seu texto sem un único acento. É claro que a culpa é do computador... By the way, se permite "anglicanismo" é em si mesmo um anglicanismo já que a palavra portuguesa é anglicismo.

    By Anonymous Anónimo, at 7:06 da tarde  

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