aforismos e afins

29 dezembro 2005

Leituras do dia - Filmes e Escrita

Com pouco tempo, há que selecionar. O Henrique Raposo volta a falar de filmes em 2005 aqui. Com comentários novamente abertos, que deram origem a outro (grande) post, sobre diferentes registos de escrita. Quanto aos filmes, já tinhamos concordado em não linkar mais o João Galamba (oops, sorry) enquanto ele não alugar o Mystic River. «Quando acaba um grande filme, gera-se um certo silêncio", diz o Henrique. Eu até trocaria o gera-se por um pede-se, para não dizer um impõe-se. Nada pior que o frenesim de quebrar silêncios com palavras que distraem e que violam a sacralidade de deixar repousar o impacto que certo filme teve. Eis uma boa razão para ir ver (certos) filmes sozinho. Ir ao cinema sozinho (então à sessão da meia-noite) é um dos poucos actos de liberdade total que nos podemos permitir hoje. Entre outros, Uma história simples, 25th hour, e A sombra do Samurai foram abençoadamente vistos assim. Sem pressa de conclusões. Já o Primavera, Verão, Outono, Inverno... Primavera (Henrique, tens que alugar) foi estragado com um comentário no final de quem me acompanhava.
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«[O] acto final de Eastwood em Millon Dolar Baby está correcto? Eu acho que sim. É uma prova de amor. É um acto moral que só o Homem pode fazer.» Afinal também se fala (ainda que en passant) de (chamados) "temas fracturantes" n'O Acidental - acho muito bem. Eu confesso que ia com tal expectativa para este filme que me desiludiu ligeiramente. Gostei bastante mais do Mar Adentro, a que não é alheio o facto de me lembrar perfeitamente do acompanhamento que o caso teve nos media. Aliás, oportunidade para voltar a lembrar o Invasões Bárbaras. Diz ainda o Henrique: «Não se fala de obras-primas. Escreve-se. É para isso que se inventou a escrita.» De facto, soa sempre a estranho falar de obras primas. Parece que é difícil não ter a consciência pesada de se estar a (pretensamente) passar por um Eduardo Prado Coelho, quando as palavras faltam e se encavalitam lugares mais ou menos comuns (que podem não o ser, mas a oralidade é assim), quase descamabando numa espécie de "competição pela intelectualidade". Péssimo.
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Há outro tipo de filme, a propósito do que o João disse sobre o 2046. São os filmes sobre os quais o primeiro comentário é sobre a fotografia. Sendo o filme uma obra estetética, faz sentido por de lado (ou minorar) o seu "conteúdo"? Julgo que não. Por isso também me irritam os filmes onde já se sabe que no final se vai referir a banda sonora ou a fotografia, e mais nada. [Mas eu acho que o 2046 é um grande filme, e que a fotografia é um acrescento, tal como no Disponível para amar, cujas presenças femininas e seus movimentos (não só mas também de anca) arrebatam qualquer ser com um mínimo de sensualidade].
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O Henrique depois fala de diferentes registos da escrita, num post onde insere uma foto bem fálica do Empire State Building e mais outra com um toque Kama-Sutriano [o que registamos com agrado]. Diz que «Quando se escreve sobre Política, (...) é preciso moderar a retórica, a graça, a ironia, enfim, o estilo, a forma. (...) Quando se aplica o tal “talento” de que V. fala à Política, o resultado é uma coisa exaltante e, por isso, perigosa. E sem coerência.» Percebo e concordo, mas não integralmente. Porque há excepções, que têm a ver com o lado satírico da análise política. Relembro uma crónica de João Pereira Coutinho em que ele dita 10 regras para se ser um bom cronista, e em que exalta o facto duma crónica ser uma extensão do eu, onde o estilo deve prevalecer sobre a forma (falo de crónica no sentido estrito, em oposição a texto ou artigo). Concordo plenamente quando o Henrique diz «Em política, o critério estético é o último de uma extensa lista.» (susbtituiria o "é" por "deve ser", ainda que a mensagem normativa esteja subliminarmente presente, julgo eu).
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O ponto 6. do Henrique simplifica as coisas de uma forma que o põe (apetecivelmente) a jeito para umas boas críticas (que é como quem diz, uns bons cartões): «Escrever sobre política é como fazer arquitectura. É preciso pensar o texto de uma ponta a outra. É preciso estar atento à coerência interna. Porque se não existir essa coerência, o edifício cairá. (...) . A Arte é um organismo. Escrever sobre arte é como fazer amor. Não interessa a coerência mecânica. Não se pensa. Faz-se.» Mas na essência concordo com ele, e este é um dos pontos onde é bom simplificar e traçar linhas distintas fortes, ainda que exageradas. Isto fez-me lembrar o meticuloso arquitecto Saraiva e os seus editoriais.
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Notas finais 1: gostei do ponto sobre Nietzsche - temos que dissecar isso uma outra altura (com copos à mistura se possível).
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Notas finais 2: curioso de saber a tua opinião sobre o Emmanuelle. [Isto não é piada, é curiosidade mesmo, porque acho-o um filme ímpar, e não só pelo contexto em que ele é feito - acho que a sua mensagem é em grande parte intemporal].
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Notas finais 3: espero que os comentadores estejam à altura de permitir que os diálogos subterrâneos dos teus posts possam continuar.

7 Comments:

  • Confesso que, pessoalmente, prefiro ir à sessão das 7 da tarde. entrar no cinema ao pôr-do-sol e depois ser-se atirada para uma cidade completamente diferente, isto porque estamos emocionalmente diferentes, por vezes amputados e incapazes de estancar a hemorragia... aconteceu-me isso com o "Donnie Darko director's cut", saí do cimena às 9.30 talvez mas só consegui chegar a casa depois da meia-noite, senti-me obrigada a vaguear por lisboa [e sentir o abandono afectivo de uma cidade que nos acolhe, mas que ainda não é nossa] a tentar procurar as palavras, a ordenar as ideias, a tentar meter a mão na ferida e conter o sangue...

    curiosamente senti um desamparo emocional identico [mas por razões diferentes] agora, quando vi "Rois et Reine", felizmente fiquei separada do meu companheiro de cinema, que adormeceu e acabou por sair do filme a meio...

    engraçado, filmes que me acrescentam alguma coisa, não me ficam na memória, não me causam cicatrizes...

    um encantamento pelo "emmanuelle"???

    p.s. tens ali uma gralha, não?? 3º paragrafo, 7ª linha, 11ª palavra:"fotogragia", corrige lá isso, pá! que o texto está uma maravilha

    By Blogger aL, at 8:39 da tarde  

  • Também gosto muito da sessão das 7h, e tem essa coisa maravilhosa de ter a noite dentro para o que quer que se proporcione (reflexões, flexóes, o que seja). A da meia-noite tem mesmo o encanto especial da solitude e do desprendimento. Mas sai um bocado do pelo a quem tem que cumprir horarios, claro.

    PS: corrigida a gralha - grazi :)

    PS1: encantamento com o Emmanuelle, sim. Mas também desconheço qualquer feminista (seja "clássica", "neo-clássica", "mitigada", ou "pós-contemporânea"), que aprecie o teor [e a "lição"] do filme. Mas isso são conversas para outros fóruns ;)

    By Blogger Tiago Mendes, at 9:05 da tarde  

  • claro! às 19h jé nem é noite nem nada! em vez de te atirares para a cidade para a próxima atira-te dum penhasco! vais ver como se estanca uma hemorragia...

    By Anonymous Anónimo, at 1:34 da manhã  

  • Também fiquei desiludido com o filme do Clint. Para quem conhece as obras primas Um Mundo Perfeito e Mystic River (e mesmos os muito bons Dívida de Sangue e Meia Noite no Jardim do Bem e do Mal), Million Dollar Baby sai sempre a perder.
    É demasiado bem intencionado, demasiado simpático com as personagens (de quem somos obrigados a gostar) e demasiado dèjá vu para quem já viu muitos filmes de Eastwood.
    É triste dizê-lo, mas não consegui gostar muito de nenhum filme de 2005. Ainda aquele que mais prazer me deu ver foi o Sideways, filme bonito.

    By Anonymous Anónimo, at 2:01 da manhã  

  • O Sideways é muito bonito, muito divertido, e com muito sumo à mistura (bom... e vinho tambem). Alem de que é dos poucos filmes que aborda um pouco o "universo masculino" sem cair em excessos. E os diálogos são naturais e reais, que é coisa tão dificil que torna o filme impar. Dialogos esses que me fazem (novamente) recordar o "Invasoes Barbaras", que é simplesmente unico nesse (e noutros) aspectos.

    By Blogger Tiago Mendes, at 11:19 da manhã  

  • Caro Tiago
    Quando vi o Mystic River tinha sido mae ha pouco tempo. Quando vi a expressao do Sean Penn, no parque, quando percebe que e a filha que la esta morta, tive um baque. E tenho o mesmo baque sempre que recordo a cena. E um dos melhores filmes de sempre.
    Bom ano!
    Ana

    By Anonymous Anónimo, at 2:13 da tarde  

  • O Sean Penn tem o papel (até agora) da vida dele nesse filme. Eu não sou pai e tive o mesmo baque (de resto, com várias cenas do filme). O seu comentário está a dar-me ainda mais vontade de o rever! Bom 2006 também para si,

    Tiago

    By Blogger Tiago Mendes, at 2:16 da tarde  

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