aforismos e afins

19 outubro 2005

«Castro dois, direitos humanos zero»

Teresa de Sousa no seu melhor. No Público e aqui como comment.

1 Comments:

  • Castro dois, direitos humanos zero
    Teresa de Sousa


    Zapatero quer ser o rosto simpático e idealista de um socialismo moderno, liberal nos costumes e internacionalista. Tudo isso está certo. Mas resta a questão da coerência

    1.Fidel Castro não foi a Salamanca. Especula-se que preferiu jogar pelo seguro e evitar o incómodo de ver um juiz espanhol emitir um mandado de captura na sequência das queixas apresentadas por cidadãos particulares por alegados crimes contra a humanidade. O caso Pinochet fez escola. Apesar da ausência do ditador cubano, a XV Cimeira Ibero-americana voltou a servir na perfeição os seus propósitos. Os chefes de Estado e de Governo que se reuniram em Salamanca podem ter deliberado sobre temas muito interessantes. O que ficou da reunião foi a condenação unânime do "bloqueio" americano a Cuba (anteriormente era "embargo", mas os subscritores pensam que é apenas uma questão de semântica). O comunicado final da cimeira é omisso quanto às violações sistemáticas dos direitos humanos em Cuba e tece considerações muito vagas sobre a utilidade da democracia e do bom governo para combater a injustiça e a pobreza. Dois pontos para o ditador, zero pontos para os direitos humanos.
    Pergunta-se: para que servem as cimeiras ibero-americanas que Madrid quer ver institucionalizadas como uma comunidade "com uma voz própria no mundo"? Para criar mais um pilar (um "contrapeso" como agora se costuma dizer) e mais uma voz contra o poderio e a influência da superpotência? Um instrumento útil para aumentar a influência de Espanha no subcontinente e abrir mercados às suas empresas? Entre uma indisfarçável instrumentalização ideológica e a mais pura realpolitik fica a ausência de uma verdadeira estratégia para ajudar a América Latina a vencer a "fadiga democrática", a combater o populismo de tipo Chavez (que já se sabe aonde vai ter) e de ajudar as democracias da região a vencer a batalha por um desenvolvimento socialmente mais justo.
    A triste unanimidade com que os líderes, incluindo os europeus, ofereceram a Castro mais esta deferência, sem que oficialmente lhe tenha sido exigido nada em troca, foi apenas quebrada pelas palavras do presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, ao lembrar que nenhuma declaração deveria encorajar o regime castrista "a continuar a violar os direitos humanos", independentemente de se concordar ou não com o embargo americano a Cuba, cuja eficácia é muito discutível.

    2. O Governo de José Luis Rodríguez Zapatero quis apresentar-se na arena internacional como o contraponto ideológico do seu antecessor José-Maria Aznar. A primeira coisa que fez para sublinhar esta diferença foi retirar as tropas espanholas do Iraque, independentemente das circunstâncias políticas novas, criadas pelos atentados de Madrid três dias antes da sua vitória eleitoral. Depois disso, o líder espanhol multiplicou-se em iniciativas internacionais para apresentar o seu país como uma potência europeia "desalinhada" da América e alinhada com os países do Sul.
    Há um ano, Zapatero tomou a iniciativa de propor, na sede da ONU em Nova Iorque, uma "Aliança de Civilizações" para fomentar a cooperação entre culturas distintas, em claro contraponto à "guerra ao terror" da administração americana. Encontrando no Presidente Lula da Silva uma "alma gémea", juntou-se-lhe e ao Presidente Chirac para lançarem solenemente, na mesma ocasião, uma iniciativa internacional contra a fome. O chefe do Governo espanhol (que, tal como Aznar e com toda a legitimidade, quer afirmar a Espanha como uma potência de ambições mundiais, embora escolha outros aliados) quis fazer da comunidade ibero-americana mais um marco nesta estratégia.
    As suas iniciativas são todas louváveis. Mas, para além de uma certa visão do mundo que carregam em si (e que, por vezes, parecem confundir a defesa do multilateralismo com antiamericanismo), traduzem-se em muito pouco. A "Aliança de Civilizações" não passou até agora da escolha do habitual grupo de peritos para analisar o assunto. A luta contra a fome é uma bandeira simpática sem qualquer tradução prática digna desse nome. Aliás, sobrepõe-se aos Objectivos do Milénio de Kofi Annan, que são, de facto, o instrumento mais forte de compromisso das nações ricas do Norte em matéria de combate à pobreza e ao subdesenvolvimento.
    Zapatero quer ser o rosto simpático e idealista de um socialismo moderno, liberal nos costumes e internacionalista. Tudo isso está certo. Mas resta a questão da coerência.
    Há 10 anos que a União Europeia se revela incapaz de concretizar o seu objectivo mais importante para a América Latina: uma "parceria estratégica" com o Mercosul, o projecto de integração regional que mais se aproxima do modelo de integração europeia. Essa parceria visava a criação de uma área de comércio livre com quase 700 milhões de pessoas que seria, a todos os títulos, um incentivo importante ao desenvolvimento dos países do Mercosul. As negociações estão bloqueadas por causa da sacrossanta PAC, da qual os generosos europeus, a começar pelos franceses e pelos espanhóis, não estão dispostos a abrir mão. É obviamente mais fácil e mais simpático anunciar uma iniciativa contra a fome de contornos vagos e objectivos ainda mais vagos.

    3. O problema da Europa (e da Espanha) é o abismo que separa a sua retórica de "superpotência" boa (em contraste com a superpotência má) e a realidade das suas políticas.
    A imagem progressista e internacionalista que José Luis Rodríguez Zapatero queria dar do seu país na cena internacional contrasta com uma violência tremenda com as imagens reais de Ceuta e Melilla. Todos os "planos Marshall" que a Comissão possa anunciar para África (e que são certamente o melhor caminho para evitar no médio prazo o arame farpado em torno da fortaleza europeia) não terão suficiente eficácia enquanto cada um dos Estados-membros da União continuar a avaliar os regimes africanos, não pelos critérios do bom governo (inscritos em todos os documentos europeus), mas em função das respectivas zonas de influência e das oportunidades de negócios para as suas empresas.
    Nada, nem um muro ainda mais alto e uma barreira de soldados ainda mais forte, conseguirá parar a vaga de desesperados que fogem à fome, à guerra, aos abusos, à pobreza e, em cada vez mais casos, à simples ausência de futuro. Perante esta pobreza concreta, Zapatero não hesita em adoptar o mais frio pragmatismo.
    É verdade que o Governo de Madrid foi generoso o suficiente para ter legalizado 700 mil clandestinos. É evidente que a União Europeia não pode abrir indiscriminadamente as portas à imigração em massa.
    Mas isso não justifica que a Europa concentre todos os seus meios no combate à imigração ilegal e aos "falsos" pedidos de asilo enquanto mantém uma política de imigração legal igual a zero, com a excepção da reunificação familiar. Além de desumana, essa política é estúpida, diante da realidade da demografia europeia, da insustentabilidade do seu modelo social e o seu fraco crescimento. Nem, muito menos, justifica que se empurre para cima de Marrocos e de outros países "de passagem" dos imigrantes que vêm da África negra a responsabilidade de resolver o problema, mesmo que para isso o Governo socialista de Zapatero não hesitasse um minuto em passar ao regime de Rabat um atestado de bom comportamento em matéria de respeito pelos direitos humanos.
    Não se pedem milagres. Pede-se, sim, um pouco mais de coerência e um pouco menos de hipocrisia. Jornalista

    By Blogger Tiago Mendes, at 1:10 da manhã  

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