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«A entrevista que deu esta semana à revista Visão Mário Soares classifica Medina Carreira como uma "Cassandra lusitana"». É assim que começa assim o artigo de Helena Matos no Público de hoje. Além de desmascarar a visão de Soares, tem o bónus de mostrar o quão a sua apregoada "formação humanista" se recomenda. A não ser que a gaffe se deva à idade e falta de lucidez. Mas como o dito senhor afirma que a PDI não (lhe) é relevante, optamos - sem paternalismos - pela primeira hipótese. Online para assinantes e copiada como comentário em baixo.
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«A entrevista que deu esta semana à revista Visão Mário Soares classifica Medina Carreira como uma "Cassandra lusitana". Os sucessivos avisos de Medina Carreira sobre o incomportável peso do Estado na sociedade portuguesa e sobre a não sustentabilidade da segurança social transformaram-no, segundo Mário Soares, num "profeta da desgraça". Mário Soares orgulha-se das suas leituras, mas creio que a Ilíada e a Odisseia não serão as suas leituras mais recentes, pois esqueceu o essencial: esqueceu que Cassandra tinha razão. A maldição que sobre ela fora lançada por Apolo fizera com que os seus avisos nunca fossem tomados em conta. Mas Cassandra não se enganava.
Não sei o que levou Mário Soares a recorrer à imagem de Cassandra. Creio até que tentou emendar o exemplo, referindo em seguida, na resposta aos jornalistas da Visão, uma personagem queirosiana que, sem dúvida, amenizava a alusão a Cassandra. Mas é de facto de Cassandra que se trata. É de facto em Tróia que estamos. A Europa é hoje uma cidade-Estado. Ciosa dos seus privilégios, é-lhe indiferente o que acontece fora das suas fronteiras. Todos os dias, seja nos assaltos às valas de Ceuta, em pequenas embarcações ou a salto, morre gente ao tentar passar as suas muralhas. No dia em que na Espanha nasceu a futura rainha, no fundo duma patera descobriu-se o cadáver dum bebé. E ninguém quis saber sequer se era menino ou menina.
Tal como ninguém quis saber dos imigrantes que morreram queimados num centro de detenção na Holanda... Desde que não entrem, aceita-se tudo. Quando muito, mandam-se uns altos-comissários e uns ministros que se mostram chocados. Todos sabem que, para esta vergonha acabar, era necessário que os cidadãos europeus aceitassem perder privilégios; que, em primeiro lugar, se alterasse a PAC; se deitassem abaixo barreiras alfandegárias. Mas ensina a tragédia que os personagens, por mais avisados que estejam, nunca dão ouvidos. Foi assim em Tróia. É assim aqui. E, lá como cá, então como agora, haverá sempre gente disposta a rir de Cassandra.
Entretanto perora-se contra a globalização, fazem-se concertos de caridade e espera-se que esses homens vindos algures de África, da Ásia, da América Latina... desapareçam.
Outra das características da cidade-Estado é a crença na sua invencibilidade. Um culto desmesurado da sua diferença. Da sua superioridade. Durante décadas, a Europa deleitou-se com os relatos sobre o racismo nos EUA. Por ironia do destino, na mesma semana em que os norte-americanos prestavam as maiores homenagens a Rosa Parks, Paris, a cidade da diferença europeia, era posta a ferro e fogo por bandos que se identificam como imigrantes. Assim, quando perante aqueles grupos que incendeiam automóveis, espancam pessoas, destroem habitações... Mário Soares, como afirmou na TVI, vê trabalhadores em luta pelos seus direitos adquiridos, está a manter-se coerente com uma das mais sólidas crenças da cidade-Estado em que nos tornámos: a de que o organograma das lutas sociais é passível de ser transposto para as questões raciais, culturais e religiosas.
Sendo certo que, graças a homens como Mário Soares, os europeus felizmente trocaram as barricadas do proletariado pelas delícias do Estado social, não é menos certo que sempre lhes pareceu exaltante que outros povos, sobretudo se africanos, fossem protagonistas de experiências a que eles mesmos liminarmente se recusaram submeter. O caso português é, aliás, exemplar desta duplicidade da cidade-Estado europeia: em 1975, recusámos ser a Cuba da Europa, mas chamámos então e chamamos hoje "libertação" aos acordos em que entregámos a administração das ex-colónias a partidos totalitários. Se fosse hoje, não seria assim? Claro que seria. A cidade-Estado nunca muda.
Apenas escolhe outros protagonistas para ilustrarem o seu "export de convicções": Arafat e Lula da Silva são algumas das mais recentes actualizações desse ideário. A cidade-Estado começa invariavelmente por subestimar as acusações de corrupção, nepotismo e autoritarismo que lhes são feitas. Em seguida recebe-os como grandes líderes. Depois, quando a realidade se impõe, deixa-os cair e parte de novo em busca do títere que longe, bem longe, se preste a protagonizar os sonhos que diz que ainda não morreram. E oficialmente o mundo continua na mesma. E nós aqui no melhor dos mundos possíveis.
O vandalismo que varre os bairros periféricos de Paris abala os pilares da Tróia em que nos tornámos. Não podemos culpar Bush nem a China. E, à falta dum bode expiatório, repetem-se com a fé de quem pratica um esconjuro todas as explicações oficiais da cidade-Estado para todos os problemas, em qualquer lugar do mundo. E são elas a pobreza, a falta de habitação, o desemprego... No caso concreto, nada disto resiste a uma análise de alguns segundos. Aliás, podem cobrir-se aqueles jovens de subsídios, juntando outros àqueles que as suas famílias já recebem, e o problema da sua exclusão manter-se-á. Porque ela nasce dum dos pilares da nossa cidade-Estado: o nosso culto das vítimas. Esse culto que nos permite sentir moralmente superiores.
Os pobrezinhos das segundas-feiras das famílias burguesas do início do século XX foram substituídos pelos excluídos. Tal como ninguém esperava que os pobrezinhos deixassem de ser pobrezinhos, também ninguém esperou que as famílias destes jovens deixassem de ser poligâmicas. Ninguém exigiu que respeitassem a escola e fossem bons alunos. Só após os atentados do 11 de Setembro se passaram a tomar mais a sério as denúncias da aplicação da sharia em território europeu e muito particularmente em França. Em nome dessa tremenda mistificação que é o multiculturalismo alimentou-se nestas populações um culto das suas raízes africanas e muçulmanas, quando as raízes deles estavam aqui. Criou-se-lhes uma identidade num alhures que ninguém sabe onde fica, tanto mais que não existe.
Seria bem mais fácil se, como defende Mário Soares, estivéssemos perante pessoas em luta pelos direitos conquistados e ameaçado pelo liberalismo. Mas não é nada disso que acontece. O Estado social não tem resposta para isto, porque isto é uma consequência directa do seu paternalismo e do seu autismo. Alguns irão resistir enquanto puderem para não colocarem em causa a sua explicação oficial do mundo. Como o maire que compareceu no funeral dos dois jovens envolvidos nos confrontos e que não achou necessário acompanhar o corpo de Jean-Claude Irvoas, morto a pontapé por um dos bandos. Como Mário Soares, que os prefere apresentar como pessoas lutando por direitos sociais.
Não sei se o destino de homens como Medina Carreira é serem as nossas Cassandras. Mas espero sinceramente que Mário Soares não fique para a História como o Sínon dos nossos tempos. Quem era Sínon? O grande e eloquente conversador que convenceu os troianos a levarem o cavalo para dentro das suas muralhas. Tróia não caiu apenas por não ter ouvido Cassandra. Tróia caiu também por ter ouvido Sínon.» Jornalista
By Anónimo, at 6:57 da tarde
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