aforismos e afins

02 dezembro 2005

Esclarecimento «hermenêutico» ao RAF

Caro Rodrigo: o teu comentário a este meu post já me tinha decidido a escrever umas linhas sobre o assunto para o clarificar, e o teu subsequente post veio apenas incrementar essa necessidade. Como te tenho como leitor relativamente assíduo daquilo que escrevo, acredito que saberás bem como gosto de cuidar a comunicação das ideias que vou escrevendo. Repara que temos que atender o contexto. A discussão não trata do «liberalismo», mas sim duma parte dele - a «escola austríaca». Na citação de CNC do Tugir, eu leio o termo «neo-liberal» à luz do contexto da discussão, como qualificando os «austríacos» portugueses. Repara que CNC fala da blogosfera neo-liberal. Por razões óbvias, prefiro evitar este termo. O que se trata, repito, é de falar dos «austríacos», que estão muito bem representados em blogues como O Insurgente e o Blasfémias. Este é o primeiro ponto: nunca pretendi fazer um paralelo entre o marxismo e o «liberalismo», mas sim entre o marxismo e a «escola austríaca».

Relativamente ao destaque que eu dei a um excerto desse texto. Repara que eu digo que subscrevo a «ideia base» expressa nesse excerto e não (necessariamente) o texto todo. É verdade que escrevi como comentário a esse post «Excelente análise». Uma hipérbole cordial e ligeiramente emotiva (mea culpa) para sublinhar a minha concordância com o principal desse texto, que estava, de resto, escrito com qualidade e clarividência. E o que é o principal?

O que está enfatisado no título, e no texto a vermelho e a itálico, de resto em concordância estilística com a ênfase final na «ideia base»: o método, e a devoção. Ninguém disse que o liberalismo é igual ao marxismo. Estamos a falar da «escola austríaca», e focamos não o conteúdo mas a forma. Ora, o que esse texto diz é que essas escolas (as «austríacas», que CNC chama erradamente de «neo-liberais) pretendem que reduzem a análise a uma abordagem reducionista do comportamento humano. Não vou entrar aqui na descontrução da «economia austríaca». Menciono um exemplo simples: a cultura. Para muitos reducionistas (não apenas os «austríacos»), tudo é passível de ser analisado através do individualismo metodológico e com a lógica de mercado. Ora, há certos fenómenos que requerem uma análise mais abrangente.

Nunca tinha lido o Tugir nem li qualquer texto para além do mencionado. Não sei qual a inclinação ideológica ou partidária do blogue ou de CNC. Gostei da ideia base expressa. Isso não implica adesão a qualquer outra ideia do autor, muito menos à sua (eventual) ideologia. Tal como eu concordo grosso modo com a crítica que o João Galamba faz à escola austríaca sem que partilhe a sua visão do mundo nem sinta qualquer perigo de me «esquerdizar» ao interagir amigavelmente com ele. É que, repito, nunca aqui ninguém falou de «liberalismo» mas sim de «escola austríaca». CNC referiu-se aos «neo-liberais», mas isso é um pequeno pormenor. Repara também no que eu enfatiso a azul nesse post, tendo em vista não generalizar a crítica a toda a blogosfera visada (que CNC também não faz - é só uma ênfase).

Eu dou prioridade à ideia sobre o sujeito, e por isso não tenho problemas em ter subscrito um autor com o qual posso não concordar em mais nada. De resto, já hoje me tinha envolvido num debate aceso e amigável com o Miguel a propósito do post do Manuel Pinheiro, em que ele chamava ao João de «bravo», o que, claro está, não implica necessariamente uma (qualquer) adesão substantiva às ideias dele, mas apenas a constatação que há um debate interessante em curso, e onde uma das partes se confronta com vários "adversários" com bravura.

Ou seja, o meu liberalismo está intacto desde que acordei. O que se trata aqui é de analisar a «escola austríaca». E, sinceramente, e isto não pretende ser ofensivo, quanto mais leio sobre isso mais percebo o quanto isso está formalmente próximo duma religião, porque parte dum conjunto de ideias que não permitem refutação. Isso é perfeitamente legítimo, mas, compreenderás, é muito difícil de conduzir a qualquer dialéctica frutuosa. Eu com marxistas não discuto. [Ok, excepção a um grande political-theorist amigo meu aqui de Oxford que tem uma argumentação passível de ser ouvida]. Também não discuto religião. E também não vejo grande interesse em discutir a escola austríaca. Simplesmente, porque qualquer delas parte de premissas que não são convidativas ao debate. É nesse sentido que eu aceitei e subscrevi a *analogia* feita por CNC do Tugir, entre o marxismo e a escola austríaca. E a analogia encerra um ponto de vista meramente formal.

Uma nota final: claro que o João se excedeu em alguns comentários, ele próprio já o reconheceu. Mas também eu me espanto com o protagonismo - ou, para ser mais factual, com a sobre-representatividade - que a escola austríaca tem na blogosfera de direita portuguesa. O que, sinceramente - e isto não é ironia - diz muito da elevada qualidade intelectual dos seus defensores. Também poderá ter a ver com a iliberalidade do nosso país, que convida a posições extremadas que possam "partir a loiça" de forma mais eficiente. De acordo. O problema quanto a mim, é que ela é irrefutável e não está aberta ao diálogo. Basta ver quantas vezes é que certos bloggers mudaram ou ajustaram a sua opinião. Quando se constrói um modo de ver o mundo baseado no Mises.org, tantas vezes duma forma perfeitamente algorítmica, não há grande possibilidade de debate.

Isto não é obviamente um comentário pessoal. Muito menos seria para ti, estimado Rodrigo. É apenas a constatação, salutar, cordial, mas nem por isso menos necessária, que às vezes as diferenças na forma de construção teórica daquilo em que acreditamos são de tal forma díspares, que o melhor é por o debate de lado. Penso que é isso que o João sente, e eu também, ainda que de forma menos acentuda, provavelmente por me situar mais próximo susbtantivamente. Isso não tira nem um pedacinho do liberalismo em que me revejo. Nem tira um pedacinho do teu liberalismo nem do liberalismo de mais ninguém. Não estamos a falar de princípios mas sim da sua justificação. Quem, como eu, não se sente particularmente atraído pelo apriorismo de Hayek que tu expuseste brilhantemente aqui, só pode pedir-te que «concordemos em discordar». E não se fala (muito) mais nisso. Como não se deve falar demasiado de religião.

Um grande abraço,