«A lei não é um repositório da moral.» devo confessar que cada vez mais tenho dúvidas sobre a validade desta afirmação. pois a lei é redigida por seres morais, a lei é feita cumrir por seres morais, a punição por incumprimento da lei é decretada por seres morais...
Nao e' um repositorio = Nao contem *toda* a moral. Ate' porque a moral nao e' consentanea. Ha' que distinguir o publico e o privado. CLaro que a lei pretende sancionar comportamentos socialmente nefastos, nos quais se incluem comportamentos "imorais", mas nao tem, de longe, o sentido de "moralizar" a sociedade, mas apenas de a "ordenar", ou, se quiseres, de a "lubrificar", de modo a que possamos viver de forma relativamente fluida e cooperativa.
A distincao e' tenue, atencao. Dai que valha a pena frisa-la, ainda que sem espaco para desenvolver demasiado. O problema teu, quanto a mim, esta' em quereres "espelhar fidedignamente" a moral na lei. Por exemplo, a Igreja acha a homossexualidade imoral, mas ela nao e' (no Ocidente) condenada na lei (discrimincacao nao e' o mesmo que condenacao). Ha' muitas morais "privadas", e a lei, pelo menos numa optica liberal, deve precocupar-se com o espaco publico e nao com o privado. Desde que ninguem chateie ninguem, nao ha' justificacao para fabricar leis sobre isso. QUanto menos, melhor.
A nao separacao clara das dimensoes da "lei" e da "moral" - ainda que haja um grande e natural "overlapping" - e' um dos grandes problemas dos dias que correm, onde todos querem "moralizar" atraves da "regulamentacao".
Ha' que atender ainda a duas coisas interessantes: coisas que sao estipuladas na lei sem terem condenacao, isto e', nao tendo sancao. Isto corresponde a uma vontade de "ordenamento" sem que haja a punicao por parte do estado, muito porque funciona tambem a punicao social - o estar na lei tem um peso grande sobre o "dever ser", e' inegavel.
Para mim e' mais importante perceber a *natureza* diferente que subjaz 'a lei e 'a moral, ainda que na realidade possa haver um overlapping de 99% entre as duas, do que achar (talvez por o overlapping ser grande) que elas sao a mesma coisa, e que representam a mesma funcao. Nao sao. Lei e Moral tem de ser separadas. Publico e Privado sao coisas diferentes.
Espero ter esclarecido um pouco mais... e fico 'a merce dos juristas e demais especialistas no assunto.
1. sítio onde se guarda alguma coisa; depósito; 2. compilação; 3. compêndio; 4. conjunto de conhecimentos;
Uma coisa e' ter "por inspiracao" e "por base" um conteudo ordenador da sociedade, onde a moral tem certamente *algum* papel (mas nao necessariamente *todo* o papel).
Outra, bem diferente, e' ser um compendio / coleccao / espelho de toda a moral. Que, repito, nem faz sentido referir no contexto duma sociedade liberal, onde nao ha' um "fim comum", e onde o "bem comum" esta' a cabo de cada um, sujeito, naturalmente, 'a satisfacao de regras minimas de convivencia. Era esse o ponto das frases iniciais, que nao podem ser mais explicitas por razoes de espaco. Espero que isto ajude a esclarecer... desta vez nao vai haver post de seguimento :)
Obrigado, Davi. Eu quero crer que nao vai ser preciso outro esclarecimento, tendo em conta o que ja' escrevi aqui nos comentarios, para nao falar na clarificacao sobre o caso de David Irving, que acho vergonhoso.
achei engraçado a colocação da liberdade de expressão acima do bom senso e moderação. Mas já agora acerca dos valores, deverá a liberdade de expressão estar acima do valor de respeito humano. Claro que não por isso a calunia e a ofensa são transgressões á liberdade de expressão. Agora a dificuldade do caso é o que é este respeito, será à pessoa? Poderá estender-se aos bens da pessoa? Poderá estender-se aos ideais de uma pessoa? A sua sugestão é recorrer ao sistema democrático e deixar o tribunal decidir. Uma vez que isto é complexo e depende da circunstancia, da mensagem, da intensidade de expressão, etc, todos os factores que contribuem para que não haja algo tabelado mas sim existência de um intervalo de flutuação para pena. Neste caso, seria entreposto um processo contra o jornal por exemplo pela comunidade islâmica no tribunal dinamarquês? E se uma dada comunidade, ou melhor um país, se se sentir ofendido por uma dada suposta liberdade de expressão, deverá o país censurar algo, eliminar a sua distribuição, sabendo que se for editado, irá ser violado uma lei no seu país? e se for noutro país? Penso que deixei 2 pontos que ainda não consegui discernir claramente. já agora acho que os cartoons não são nada ofensivos!
"achei engraçado a colocação da liberdade de expressão acima do bom senso e moderação."
Sao hierarquicamente distintos e a liberdade de expressao so' pode ter valor real se for uma coisa "a prior", sobre a qual depois se farao incidir outras. Mas ela, por definicao, tem de ser o mais irrestrita possivel em termos de legislacao. Isso nao quer dizer que todo o seu uso seja aceitavel, mas apenas que a forma de lidar com eventuais "abusos" nao e' a limitacao da lei, que se quer tao geral quanto possivel.
"Mas já agora acerca dos valores, deverá a liberdade de expressão estar acima do valor de respeito humano."
O respeito humano e' algo muito subjectivo. Essa pergunta e' traicoeria. Acima da vida humana nao esta certamente. Mas ja' a honra nao pode estar acima. Mais uma vez, para isso ha' tribunais.
"Claro que não por isso a calunia e a ofensa são transgressões á liberdade de expressão."
Mas o que e' calunia e ofensa e' subjectivo. Voltamos sempre ao mesmo ponto: uns querem impor o "bom senso" na lei, outros preferem deixar isso nao escrito e regulavel pela sociedade, quer atraves do "costume", quer atraves dos tribunais (e ambos estao ligados, claro).
"Neste caso, seria entreposto um processo contra o jornal por exemplo pela comunidade islâmica no tribunal dinamarquês?"
Por exemplo. Ou no tribunal dos direitos humanos, em Haia.
"E se uma dada comunidade, ou melhor um país, se se sentir ofendido por uma dada suposta liberdade de expressão, deverá o país censurar algo, eliminar a sua distribuição, sabendo que se for editado, irá ser violado uma lei no seu país?"
Deverao reagir enquanto "pais", isto e', quer a nivel diplomatico e representativo (governo), quer a nivel da sociedade, embora isso seja, numa sociedade aberta, espontaneo (exemplo, a indignacao perante TImor).
"e se for noutro país?"
Dependera' das aliancas diplomaticas, etc.
"Penso que deixei 2 pontos que ainda não consegui discernir claramente."
Eu nao consegui discernir 1 deles, confesso (a passagem que omiti aqui).
"Já agora acho que os cartoons não são nada ofensivos!"
Eu acho alguns ofensivos e de mau gosto, outros (como o das 72 virgens) muito engracados.
1. A norma penal contém sempre um juízo de desvalor ético de uma certa conduta. A conduta é sancionada porque é moralmente desvaliosa.
2. Nem toda a conduta moralmente desvaliosa é passível de ser sancionada. Isto porque por um lado a lei só protege certos bens jurídicos (vida, liberdade, propriedade) considerados importantes e não outros menos relevantes e porque, por outro, a norma penal visa, sobretudo, prevenir a prática futura por potenciais delinquentes dos actos punidos. Ora, onde a possibilidade de prevenção não exista, não faz sentido criminalizar; onde a prevenção seja conseguida por meios menos gravosos que a limitação da liberdade (pena), não se deve igualmente optar pela criminalização. Noutros casos, a não criminalização prende-se com critérios de justiça: para dar um exemplo, não faz sentido criminalizar o suicídio porque o agente do crime está morto; e seria injusto criminalizar a tentativa de suicído sem criminalizar o acto consumado (estar-se-ia a punir o agente que tentou, mas não aquele que logrou cometer o acto). Isto por muito imoral que se considere o suicídio...
3. A norma penal exprime sempre a moral de uma comunidade e não a ética objectiva. A diferença entre direitos penais existentes no mundo é uma consequência dessa ideia. A normal penal só pode exprimir a moral de uma comunidade porque se destina a uma comunidade; por exemplo, para haver crime é necessário, em princípio, mas nem sempre, a consciência por parte do agente de que está a cometer um ilícito, isto é, de que está a praticar uma acto desvalioso punido por norma penal. Ora não haverá consciência da ilicitude se uma acção é considerada lícita pela maioria da população numa dada comunidade. O critério de criminalização não é tanto, pois, que a conduta seja moralmente desvaliosa, mas que seja moralmente desvaliosa em certa comunidade e para essa comunidade. Por outras palavras, exige-se consenso social no juízo de desvalor ético de uma dada conduta para que ela seja criminalizada.
Tudo isto é, claro está, questionável. Mas a ideia do Tiago está certa, ainda que não tenha a certeza de a defender pelas mesmas razões que ele.
Obrigado pelas tuas palavras sábias. Estamos de acordo (em quase tudo) e pelas mesmas razões. O ponto principal é o segundo:
"Nem toda a conduta moralmente desvaliosa é passível de ser sancionada."
Julgo que é disto que a Alaíde poderá discordar, quanto a mim mal. Recordo, a propósito, as palavras finais da crónica de JMF no Público de hoje, onde ele recorda Burke:
"Não é o meu advogado que me diz o que posso fazer, mas o que o meu sentido de humanidade, de razão e de justiça me diz que devo fazer." Burke não precisava de leis, mas de valores. À falta de valores, nós vamos multiplicando as leis. Os resultados estão à vista."
COncordo com o ponto 1., talvez o mais óbvio e consensual. O ponto 3. é o mais sujeito a crítica, mas concordo na essência.
Permitia-me apenas um apontamento que é pouco importante: julgo que há países onde a tentativa de suicídio é sancionada pela lei, ainda que o suicídio consumado não o seja, porque de facto isso não tem sentido. Mas repara que para além da evidência empírica (julgo até que isso acontece em Portugal), há alguns pontos teóricos aqui: penalizar a tentativa (frustrada) de suicídio pode fazer diminuir o incentivo a tal (dado que a pessoa saberá que a probabildade de desistir / falhar é considerável), mas por outro lado fará com que os "preparativos" sejam maiores, para a coisa correr bem e depois não haver sanção. Isto tudo é um pouco ridículo, claro está. Mas, teoricamente, existir uma "ameaça credível" de punição pode ter um efeito significativo na taxa de suicídio, e também nas formas que se escolhem para tal.
Em jeito de piada (espero não ofender ninguém), julgo que uma hipótese aqui seria defender a pena capital para tentativas falhadas, como forma de "hedging" perfeito. Se resultar, resultou. Se não resultar, haverá quem fará por nós, de modo a que o resultado "pretendido" ocorra com 100% de probabilidade.
Situação típica de "win-win", embora neste caso seja "loose-loose", mas tudo depende do ponto de vista, e a morte para o suicida consciente só pode ser respeitada como uma vitória.
Em jeito de piada (espero não ofender ninguém), julgo que uma hipótese aqui seria defender a pena capital para tentativas falhadas, como forma de "hedging" perfeito. Se resultar, resultou. Se não resultar, haverá quem fará por nós, de modo a que o resultado "pretendido" ocorra com 100% de probabilidade. - TM
:):):)
Quanto ao resto:
1- Dizer-se que se exige um consenso social não significa qualquer adesão ao relativismo; o consenso social é uma condição de justiça porque a noção de culpa, sem a qual não há responsabilidade penal, pressupôe alguma consciência de ilicitude que, por sua vez, pressupôe o tal consenso.
2- Desta ideia retira-se algumas ideias: a) é a consciência moral da comunidade que conforma o direito penal e não o direito penal que conforma os costumes; b) idealmente a consciência moral de uma comunidade deve conformar-se à ética objectiva, sendo tanto mais civilizada uma comunidade quanto mais essa adequação for real. É, pois, possível comparar direitos penais atendendo a um critério ético objectivo; o que não me parece sensato é pensar-se que o direito penal pode ser eficaz e justo se completamente contrário às crenças maioritárias numa comunidade; nem tão pouco que tal adequação direito penal-ética objectiva se dá por obra e graça do legislador e não por uma evolução moral da própria comunidade.
3) No caso de suicídio, tens razão quanto à possibilidade de prevenção; também tens razão quanto à possibilidade de os suicidas procurarem ser mais eficazes em caso de criminalização do suicídio. Mas o que prevaleceu no caso português foi a ideia de justiça: seria pura e simplesmente injusto punir o suicida falhado quando se pune o suicida talentoso ou, pelo menos, bem sucedido.
Algumas notas sobre o que disseste, com a ressalva natural de não ser a minha área de especialidade:
"porque a noção de culpa, sem a qual não há responsabilidade penal, pressupôe alguma consciência de ilicitude que, por sua vez, pressupôe o tal consenso."
Julgo que aqui simplificas um pouco. Isto será verdade na maior parte das vezes, mas também há casos em que existe punição onde não exista intenção (dolo), e é um pouco subjectivo falar de "culpa". Se acharmos que sempre que há um crime / delito, há culpa, então isso é tautológico, e tu tens razão, mas isso não acrescenta muito (em termos da definição de "culpa"). Mas não tem de acrescentar, estou só a analisar a questão. Intenção, responsabilidade, consciência, premeditação, etc, entrarão todos aqui para o cocktail da "culpa", e não é demais lembrar o Dostoievksi.
"Desta ideia retira-se algumas ideias: a) é a consciência moral da comunidade que conforma o direito penal e não o direito penal que conforma os costumes;"
Diria que sim, primordialmente e "antes de tudo" (ou "inicialmente"). Mas depois há, naturalmente, uma evolução onde ambas se influenciam uma à outra. Embora tu possas "ir atrás" e dizer que na origem está sempre a consciência moral da comunidade, eu preferiria ser mais holístico e dizer que o fenómeno não é tanto de "causa-efeito" mas se vai intercruzando.
"b) idealmente a consciência moral de uma comunidade deve conformar-se à ética objectiva, sendo tanto mais civilizada uma comunidade quanto mais essa adequação for real."
Percebo o teu ponto, mas o "ética objectiva" é algo um pouco estranhao para mim... e que poderá abrir facilmente caminho a totalitarismos. O que é a ética objectiva, Zé? Os 10 mandamentos "revelados" no Monte Sinai? Aquilo a que chegamos através da razão? Os nossos impulsos? Julgo que é perigoso usar aqui o "obejctivo"...
"É, pois, possível comparar direitos penais atendendo a um critério ético objectivo;"
VOlto a discordar do termo objetivo aqui, mas ok, tomo-o como "o mais objectivo/imparcial possível", embora não esteja seguro de que isso faça grande sentido no contexto.
"o que não me parece sensato é pensar-se que o direito penal pode ser eficaz e justo se completamente contrário às crenças maioritárias numa comunidade; nem tão pouco que tal adequação direito penal-ética objectiva se dá por obra e graça do legislador e não por uma evolução moral da própria comunidade."
Concordo.
"3) No caso de suicídio, tens razão quanto à possibilidade de prevenção; também tens razão quanto à possibilidade de os suicidas procurarem ser mais eficazes em caso de criminalização do suicídio. Mas o que prevaleceu no caso português foi a ideia de justiça: seria pura e simplesmente injusto punir o suicida falhado quando se pune o suicida talentoso ou, pelo menos, bem sucedido."
Discordo porque, como disse, há uma impossibilidade ontológica de criminalizar o suicida "talentoso", e como tal a comparação que tu fazes é abusiva. Simplesmente, há uma *descontinuidade* ontológica entre o suicida falhado e o sucedido, pelo que o argumento de que "seria *mais* isto ou aquilo" não se aplica.
"Penso que na Inglaterra do século XIX a pena era exactamente essa."
Ou, pelo menos, era o que um professor meu (licenciado em Direito) dizia. Mas como fiz agora uma pesquisa na Net não vi qualquer referencia a isso, se calhar era ele que estava a inventar.
«Penso que na Inglaterra do século XIX a pena era exactamente essa.
Ou, pelo menos, era o que um professor meu (licenciado em Direito) dizia. Mas como fiz agora uma pesquisa na Net não vi qualquer referencia a isso, se calhar era ele que estava a inventar.»
Não estava a inventar, não. Existe, aliás, um relato famoso e vagamente caricato. Um homem que tentara suicidar-se por degolação é condenado à morte pela Coroa. À época, esta pena (neste caso, pelo menos) era executada por enforcamento. Na sua execução, depois de apertado o nó, o suicida começa a respirar pelo buraco que deixara aquando da tentativa de suicídio. Resumindo: soltam a corda, descem o pobre coitado, cosem-no bem cosidinho e finalmente enforcam-no.
Aí está uma história de facto caricata... mas a mostrar a forma "profissional" como os ingleses lidam com as regras que os regem (ainda que discordemos delas).
creio que actos homossexuais com adolescentes são puníveis pela lei [ou pelo menos têm uma pena maior]enquanto que os actos heterossexuais com adolescentes não. se isto não é moralizante... estou com muitos trabalhos em mãos, e a "chocar"[como se diz na minha terra!] uma gripe [aviária?, lá para o fds tratarei de pensar melhor sobre o assunto... e miguel obrigada pela dica! ;)
Alaíde: claro que a lei reflecte a moral. O que eu disse é que a lei não reflecte TODA a moral. Mais do que isto - que é uma constatação ou juízo positivo - é possível ir mais longe, e dizer que a lei NÃO DEVE reflectir toda a moral, muito menos a virtude, que é uma sub-categoria (superior) da moral.
Simplesmente, NEM TODA a moral tem de estar na lei. Entendomo-nos, ou não? :)
pelo que me lembro das minhas aulas de direito, o suicidio efectivado é crime! claro que o morto não sentirá as consequências, mas não deixa de ser crime. o que se pressupoe é que o individuo é mais do que o corpo e por isso o seu BOM NOME é responsabilizado. vamos por de lado a questão de efeitos materiais que possam ocorrer aquando o suicidio.
ainda procurei rápidamente a legislação, mas não encontrei e ...fica para proxima.
1- O conceito de culpa em direito penal engloba tanto o dolo como a negligência. Nesta última, a censura devém ou do facto de o agente representar o perigo de a sua conduta causar um dano e levianamente acreditar que o risco não se concretizará ou no facto de nem sequer representar o perigo de a conduta provocar o dano, quando o deveria ter representado e, consequentemente não ter praticado o acto em causa. Ambos os tipos de negligência representam uma conduta leviana, irresponsável do agente e, como tal, censurável. É nisto que se traduz o juízo de culpa.
2. A negligência só releva nos casos previstos na lei; muitos crimes são exclusivamente dolosos.
3. Acho que não relevas suficientemente o facto de o direito penal: a) o facto de a criminalização de uma conduta pressupor que quem a tenha possa vir a ser punido com pena de prisão com a consequente perda de liberdade; b) que, havendo uma restrição excepcional da liberdade de quem prevarica, o direito penal só pode ser entendido como última ratio, isto é, uma resposta quando todas as outras respostas falham. Tendo isto em conta, só devem ser criminalizadas as condutas que são consensualmente tidas como desvaliosas pela grande maioria dos membros da comunidade. Outra solução seria incompreensível à luz de valores de justiça e de respeito pela liberdade. Em última caso, um direito penal ao arrepio do sentimento da comunidade é necessariamente um direito penal autoritário.
4. Independentemente das valorações éticas de cada comunidade, o raciocínio ético de cada indivíduo é sempre objectivo, no sentido de que abstrai das circunstâncias que o rodeiam. Não conseguimos não pensar as questões éticas de um ponto de vista objectivo. Não conseguimos pensar as questões éticas de um outro ponto de vista que não o ponto de vista objectivo (a perspectiva do olho de Deus) sem nos contradizermos. O relativismo é uma má teoria, porque contraditória e porque elimina qualquer hipótese de crítica e discussão de ideias. O que tentei explicar é que os resultados a quem chegamos pelo simples raciocínio ético não é transportável para o direito penal sem mais. Como também já disse, a criminalização de condutas obedece a critérios primordialmente jurídicos, o que não significa que não tenha um substrato ético.
Quanto ao suicídio:
5. Pois, mas parece-me derivar dessa impossibilidade ontológica de punir o suicida bem sucedido a injustiça de punir o suicida inábil. É uma questão interessante. Em todo o caso, o argumento só por si não serve para defender qualquer das soluções (criminalização/não criminalização). Teríamos que discutir outras questões, nomeadamente a necessidade de prevenção da prática do suicídio, o desvalor ético da tentativa de suicídio, etc..
José Barros, quer-me parecer que vai aí uma grande confusão entre ilicitude e culpa (mas admito que isso seja influência da Escola de Coimbra). Desde quando é que dolo e negligência encerram um juízo sobre a culpa?
Eu não fiz a distinção entre ilicitude e culpa pela simples facto de estar a conversar com um leigo na matéria - o Tiago - e não querer complicar em demasia as coisas. Mas concedo que a confusão decorra da exposição. Essencialmente quando falo de crimes negligentes ou dolosos estou a falar ao nível da ilicitude (por exemplo, no ponto 2 do meu último comentário); nos outros casos, estou a falar de culpa (no ponto 1 do meu comentário).
A distinção ilicitude-culpa devém do facto de no primeiro caso objecto da censura ser o acto e a censura ser abstracta e de, no segundo caso, objecto da censura ser a conduta do agente e a censura ser concreta. A ilicitude não encerra obviamente um juízo de culpa, mas um juízo de censura sobre o acto considerado em abstracto (por exemplo, o acto de homicídio doloso ou o acto de homicídio negligente).
Obrigado pelos comentarios, acho que a coisa ficou clara. Tenho umas coisas a acrescentar, talvez as faca mais logo. A tematica da "Filosofia do Direito" e' muito interessante e algo que me interessa, mais do que propriamente submergir na linguagem juridica pura e dura e por vezes desnecessariamente (em foruns de discussao mais abrangente) hermetica.
PS: Ze', cuidado com a tentacao de cair na falacia das dicotomias inexistentes: ha' um continuo entre "leigo" e "especialista" que nao e' de menosprezar :-)
PS: Ze', cuidado com a tentacao de cair na falacia das dicotomias inexistentes: ha' um continuo entre "leigo" e "especialista" que nao e' de menosprezar :-)
Caro Tiago,
Estou de acordo contigo.
Hesitei na utilização do termo "leigo" nessa frase. Não há nada no direito (ou em qualquer outra área) que um "leigo" não possa saber e até compreender melhor do que um "especialista". Daí que a distinção seja apenas tendencial. E também perigosa, porque fomenta uma ideia de autoridade que leva ao acriticismo.
A ideia de "autoridade" e' real e substantiva - no problems with that. E eu compreendi, naturalmente, a "simplificacao" redutora do leio/especialista. Tudo ok. Concordo com o perigo que por vezes ha' de se levar a coisa para um "acriticismo", sobretudo se isso for feito atraves dum hermetismo que pode ser desnecessario (nao no caso, atencao) e minimizador da possibilidade de debate.
So' discordo quando dizes:
"Não há nada no direito (ou em qualquer outra área) que um "leigo" não possa saber e até compreender melhor do que um "especialista".
Para puxar a brasa 'a minha sardinha, cito alguns temas em geral mal compreendidos:
- lei dos grandes numeros - dilema dos prisioneiros - bem publico - teorema de impossibilidade de Arrow - conceito de infinito - teorema de Coase
Mal de nos se nao houvesse alguma "autoridade" a advir da especializacao! O meu ponto era um "small remark" - com um smiley no fim para ajudar a contextualizar o "tom" :-)
Relidos os teus comentarios, acho que nao discordo de nada, e sublinharia este:
"O que tentei explicar é que os resultados a quem chegamos pelo simples raciocínio ético não é transportável para o direito penal sem mais. Como também já disse, a criminalização de condutas obedece a critérios primordialmente jurídicos, o que não significa que não tenha um substrato ético."
O que reforca o ponto que ha' uma base moral/etica na lei, mas nao podemos confundir as duas coisas. [Bem sei que isto e' mais ou menos "obvio" para pessoas de Direito, Filosofia, Politica, entre outras, mas nao e' uma mensagem clara para a populacao em geral - o que ate' se compreende].
"mas nao e' uma mensagem clara para a populacao em geral - o que ate' se compreende]."
Este "o que ate' se compreende" tem por base: 1) o facto de nao termos uma tradicao onde o costume tenha muito peso; 2) o facto de nao termos uma tradicao liberal - onde a separacao da lei e da etica e' mais obvia; 3) o facto de termos um passado recente de experiencias "socialistas" conducentes 'a "redencao moral" da "comunidade"; 4) o peso da religiao, onde os "mandamentos" e demais leis morais tomam a forma escrita, que se advininha facilmente transponivel para a lei geral duma sociedade; 5) o facto do tema nao ser, mesmo tirando os pontos anteriores, "obvio" para quem nunca tenha estudado a materia (por exemplo, pessoas das ciencias naturais sem interesse em politica/direito).
Pois, é para isso que tenho penar 5 anos num curso (e mais 2 se quiser fazer mestrado).:)
Simplesmente, há que ter em conta que muitos licenciados em direito não sabem mais de direito do que muitos economistas ou sapateiros. O canudo não dá sabedoria e é perfeitamente possível fazer um curso com nota mínima de passagem sem que se compreenda as matérias. É por isso que a média de curso tem tanta importância na escolha que o mercado faz.
A autoridade advém da sabedoria e não do canudo. Geralmente, o canudo traduzirá alguma sabedoria, mas, como disse, muitas vezes, não é o caso.
Quanto à ideia que defendi e que tu citas, ela tem importância no caso especial do aborto. Parece-me um típico caso de descontinuidade entre a moral e o direito penal, na medida em que me parece haver argumentos éticos fortes para que se diga que o aborto é imoral e argumentos jurídicos fortes para descriminalizar o crime respectivo.
Penso que analisas bem as razões porque a distinção entre moral e direito não é suficientemente bem compreendida por maior parte das pessoas. E tens aí um bom ponto de partida para um texto...:)
"Quanto à ideia que defendi e que tu citas, ela tem importância no caso especial do aborto. Parece-me um típico caso de descontinuidade entre a moral e o direito penal, na medida em que me parece haver argumentos éticos fortes para que se diga que o aborto é imoral e argumentos jurídicos fortes para descriminalizar o crime respectivo."
E' um bom exemplo, de facto. Acho que sabes a minha opiniao sobre o aborto, anyways. [Archives de Dezembro/Novembro, julgo].
"E tens aí um bom ponto de partida para um texto...:)"
Indeed! Mas vou mante-lo como um "would-be" post for the next few months or so ;)
34 Comments:
«A lei não é um repositório da moral.» devo confessar que cada vez mais tenho dúvidas sobre a validade desta afirmação. pois a lei é redigida por seres morais, a lei é feita cumrir por seres morais, a punição por incumprimento da lei é decretada por seres morais...
By aL, at 3:44 da tarde
Nao e' um repositorio = Nao contem *toda* a moral. Ate' porque a moral nao e' consentanea. Ha' que distinguir o publico e o privado. CLaro que a lei pretende sancionar comportamentos socialmente nefastos, nos quais se incluem comportamentos "imorais", mas nao tem, de longe, o sentido de "moralizar" a sociedade, mas apenas de a "ordenar", ou, se quiseres, de a "lubrificar", de modo a que possamos viver de forma relativamente fluida e cooperativa.
A distincao e' tenue, atencao. Dai que valha a pena frisa-la, ainda que sem espaco para desenvolver demasiado. O problema teu, quanto a mim, esta' em quereres "espelhar fidedignamente" a moral na lei. Por exemplo, a Igreja acha a homossexualidade imoral, mas ela nao e' (no Ocidente) condenada na lei (discrimincacao nao e' o mesmo que condenacao). Ha' muitas morais "privadas", e a lei, pelo menos numa optica liberal, deve precocupar-se com o espaco publico e nao com o privado. Desde que ninguem chateie ninguem, nao ha' justificacao para fabricar leis sobre isso. QUanto menos, melhor.
A nao separacao clara das dimensoes da "lei" e da "moral" - ainda que haja um grande e natural "overlapping" - e' um dos grandes problemas dos dias que correm, onde todos querem "moralizar" atraves da "regulamentacao".
Ha' que atender ainda a duas coisas interessantes: coisas que sao estipuladas na lei sem terem condenacao, isto e', nao tendo sancao. Isto corresponde a uma vontade de "ordenamento" sem que haja a punicao por parte do estado, muito porque funciona tambem a punicao social - o estar na lei tem um peso grande sobre o "dever ser", e' inegavel.
Para mim e' mais importante perceber a *natureza* diferente que subjaz 'a lei e 'a moral, ainda que na realidade possa haver um overlapping de 99% entre as duas, do que achar (talvez por o overlapping ser grande) que elas sao a mesma coisa, e que representam a mesma funcao. Nao sao. Lei e Moral tem de ser separadas. Publico e Privado sao coisas diferentes.
Espero ter esclarecido um pouco mais... e fico 'a merce dos juristas e demais especialistas no assunto.
By Tiago Mendes, at 3:49 da tarde
Repositório:
(substantivo masculino )
1. sítio onde se guarda alguma coisa; depósito;
2. compilação;
3. compêndio;
4. conjunto de conhecimentos;
Uma coisa e' ter "por inspiracao" e "por base" um conteudo ordenador da sociedade, onde a moral tem certamente *algum* papel (mas nao necessariamente *todo* o papel).
Outra, bem diferente, e' ser um compendio / coleccao / espelho de toda a moral. Que, repito, nem faz sentido referir no contexto duma sociedade liberal, onde nao ha' um "fim comum", e onde o "bem comum" esta' a cabo de cada um, sujeito, naturalmente, 'a satisfacao de regras minimas de convivencia. Era esse o ponto das frases iniciais, que nao podem ser mais explicitas por razoes de espaco. Espero que isto ajude a esclarecer... desta vez nao vai haver post de seguimento :)
By Tiago Mendes, at 4:05 da tarde
Obrigado, Davi. Eu quero crer que nao vai ser preciso outro esclarecimento, tendo em conta o que ja' escrevi aqui nos comentarios, para nao falar na clarificacao sobre o caso de David Irving, que acho vergonhoso.
By Tiago Mendes, at 4:06 da tarde
achei engraçado a colocação da liberdade de expressão acima do bom senso e moderação.
Mas já agora acerca dos valores, deverá a liberdade de expressão estar acima do valor de respeito humano. Claro que não por isso a calunia e a ofensa são transgressões á liberdade de expressão. Agora a dificuldade do caso é o que é este respeito, será à pessoa? Poderá estender-se aos bens da pessoa? Poderá estender-se aos ideais de uma pessoa?
A sua sugestão é recorrer ao sistema democrático e deixar o tribunal decidir. Uma vez que isto é complexo e depende da circunstancia, da mensagem, da intensidade de expressão, etc, todos os factores que contribuem para que não haja algo tabelado mas sim existência de um intervalo de flutuação para pena.
Neste caso, seria entreposto um processo contra o jornal por exemplo pela comunidade islâmica no tribunal dinamarquês?
E se uma dada comunidade, ou melhor um país, se se sentir ofendido por uma dada suposta liberdade de expressão, deverá o país censurar algo, eliminar a sua distribuição, sabendo que se for editado, irá ser violado uma lei no seu país? e se for noutro país?
Penso que deixei 2 pontos que ainda não consegui discernir claramente.
já agora acho que os cartoons não são nada ofensivos!
By Anónimo, at 5:39 da tarde
"achei engraçado a colocação da liberdade de expressão acima do bom senso e moderação."
Sao hierarquicamente distintos e a liberdade de expressao so' pode ter valor real se for uma coisa "a prior", sobre a qual depois se farao incidir outras. Mas ela, por definicao, tem de ser o mais irrestrita possivel em termos de legislacao. Isso nao quer dizer que todo o seu uso seja aceitavel, mas apenas que a forma de lidar com eventuais "abusos" nao e' a limitacao da lei, que se quer tao geral quanto possivel.
"Mas já agora acerca dos valores, deverá a liberdade de expressão estar acima do valor de respeito humano."
O respeito humano e' algo muito subjectivo. Essa pergunta e' traicoeria. Acima da vida humana nao esta certamente. Mas ja' a honra nao pode estar acima. Mais uma vez, para isso ha' tribunais.
"Claro que não por isso a calunia e a ofensa são transgressões á liberdade de expressão."
Mas o que e' calunia e ofensa e' subjectivo. Voltamos sempre ao mesmo ponto: uns querem impor o "bom senso" na lei, outros preferem deixar isso nao escrito e regulavel pela sociedade, quer atraves do "costume", quer atraves dos tribunais (e ambos estao ligados, claro).
"Neste caso, seria entreposto um processo contra o jornal por exemplo pela comunidade islâmica no tribunal dinamarquês?"
Por exemplo. Ou no tribunal dos direitos humanos, em Haia.
"E se uma dada comunidade, ou melhor um país, se se sentir ofendido por uma dada suposta liberdade de expressão, deverá o país censurar algo, eliminar a sua distribuição, sabendo que se for editado, irá ser violado uma lei no seu país?"
Deverao reagir enquanto "pais", isto e', quer a nivel diplomatico e representativo (governo), quer a nivel da sociedade, embora isso seja, numa sociedade aberta, espontaneo (exemplo, a indignacao perante TImor).
"e se for noutro país?"
Dependera' das aliancas diplomaticas, etc.
"Penso que deixei 2 pontos que ainda não consegui discernir claramente."
Eu nao consegui discernir 1 deles, confesso (a passagem que omiti aqui).
"Já agora acho que os cartoons não são nada ofensivos!"
Eu acho alguns ofensivos e de mau gosto, outros (como o das 72 virgens) muito engracados.
By Tiago Mendes, at 6:19 da tarde
1. A norma penal contém sempre um juízo de desvalor ético de uma certa conduta. A conduta é sancionada porque é moralmente desvaliosa.
2. Nem toda a conduta moralmente desvaliosa é passível de ser sancionada. Isto porque por um lado a lei só protege certos bens jurídicos (vida, liberdade, propriedade) considerados importantes e não outros menos relevantes e porque, por outro, a norma penal visa, sobretudo, prevenir a prática futura por potenciais delinquentes dos actos punidos. Ora, onde a possibilidade de prevenção não exista, não faz sentido criminalizar; onde a prevenção seja conseguida por meios menos gravosos que a limitação da liberdade (pena), não se deve igualmente optar pela criminalização.
Noutros casos, a não criminalização prende-se com critérios de justiça: para dar um exemplo, não faz sentido criminalizar o suicídio porque o agente do crime está morto; e seria injusto criminalizar a tentativa de suicído sem criminalizar o acto consumado (estar-se-ia a punir o agente que tentou, mas não aquele que logrou cometer o acto). Isto por muito imoral que se considere o suicídio...
3. A norma penal exprime sempre a moral de uma comunidade e não a ética objectiva. A diferença entre direitos penais existentes no mundo é uma consequência dessa ideia.
A normal penal só pode exprimir a moral de uma comunidade porque se destina a uma comunidade; por exemplo, para haver crime é necessário, em princípio, mas nem sempre, a consciência por parte do agente de que está a cometer um ilícito, isto é, de que está a praticar uma acto desvalioso punido por norma penal. Ora não haverá consciência da ilicitude se uma acção é considerada lícita pela maioria da população numa dada comunidade.
O critério de criminalização não é tanto, pois, que a conduta seja moralmente desvaliosa, mas que seja moralmente desvaliosa em certa comunidade e para essa comunidade. Por outras palavras, exige-se consenso social no juízo de desvalor ético de uma dada conduta para que ela seja criminalizada.
Tudo isto é, claro está, questionável. Mas a ideia do Tiago está certa, ainda que não tenha a certeza de a defender pelas mesmas razões que ele.
By Anónimo, at 1:01 da manhã
Caro José Barros,
Obrigado pelas tuas palavras sábias. Estamos de acordo (em quase tudo) e pelas mesmas razões. O ponto principal é o segundo:
"Nem toda a conduta moralmente desvaliosa é passível de ser sancionada."
Julgo que é disto que a Alaíde poderá discordar, quanto a mim mal. Recordo, a propósito, as palavras finais da crónica de JMF no Público de hoje, onde ele recorda Burke:
"Não é o meu advogado que me diz o que posso fazer, mas o que o meu sentido de humanidade, de razão e de justiça me diz que devo fazer." Burke não precisava de leis, mas de valores. À falta de valores, nós vamos multiplicando as leis. Os resultados estão à vista."
COncordo com o ponto 1., talvez o mais óbvio e consensual. O ponto 3. é o mais sujeito a crítica, mas concordo na essência.
Permitia-me apenas um apontamento que é pouco importante: julgo que há países onde a tentativa de suicídio é sancionada pela lei, ainda que o suicídio consumado não o seja, porque de facto isso não tem sentido. Mas repara que para além da evidência empírica (julgo até que isso acontece em Portugal), há alguns pontos teóricos aqui: penalizar a tentativa (frustrada) de suicídio pode fazer diminuir o incentivo a tal (dado que a pessoa saberá que a probabildade de desistir / falhar é considerável), mas por outro lado fará com que os "preparativos" sejam maiores, para a coisa correr bem e depois não haver sanção. Isto tudo é um pouco ridículo, claro está. Mas, teoricamente, existir uma "ameaça credível" de punição pode ter um efeito significativo na taxa de suicídio, e também nas formas que se escolhem para tal.
Em jeito de piada (espero não ofender ninguém), julgo que uma hipótese aqui seria defender a pena capital para tentativas falhadas, como forma de "hedging" perfeito. Se resultar, resultou. Se não resultar, haverá quem fará por nós, de modo a que o resultado "pretendido" ocorra com 100% de probabilidade.
Situação típica de "win-win", embora neste caso seja "loose-loose", mas tudo depende do ponto de vista, e a morte para o suicida consciente só pode ser respeitada como uma vitória.
By Tiago Mendes, at 1:33 da manhã
Em jeito de piada (espero não ofender ninguém), julgo que uma hipótese aqui seria defender a pena capital para tentativas falhadas, como forma de "hedging" perfeito. Se resultar, resultou. Se não resultar, haverá quem fará por nós, de modo a que o resultado "pretendido" ocorra com 100% de probabilidade. - TM
:):):)
Quanto ao resto:
1- Dizer-se que se exige um consenso social não significa qualquer adesão ao relativismo; o consenso social é uma condição de justiça porque a noção de culpa, sem a qual não há responsabilidade penal, pressupôe alguma consciência de ilicitude que, por sua vez, pressupôe o tal consenso.
2- Desta ideia retira-se algumas ideias: a) é a consciência moral da comunidade que conforma o direito penal e não o direito penal que conforma os costumes; b) idealmente a consciência moral de uma comunidade deve conformar-se à ética objectiva, sendo tanto mais civilizada uma comunidade quanto mais essa adequação for real. É, pois, possível comparar direitos penais atendendo a um critério ético objectivo; o que não me parece sensato é pensar-se que o direito penal pode ser eficaz e justo se completamente contrário às crenças maioritárias numa comunidade; nem tão pouco que tal adequação direito penal-ética objectiva se dá por obra e graça do legislador e não por uma evolução moral da própria comunidade.
3) No caso de suicídio, tens razão quanto à possibilidade de prevenção; também tens razão quanto à possibilidade de os suicidas procurarem ser mais eficazes em caso de criminalização do suicídio. Mas o que prevaleceu no caso português foi a ideia de justiça: seria pura e simplesmente injusto punir o suicida falhado quando se pune o suicida talentoso ou, pelo menos, bem sucedido.
By Anónimo, at 2:02 da manhã
Correcção:
"quando não se pune o suicida talentoso...".
By Anónimo, at 2:03 da manhã
"Em jeito de piada (espero não ofender ninguém), julgo que uma hipótese aqui seria defender a pena capital para tentativas falhadas"
Penso que na Inglaterra do século XIX a pena era exactamente essa.
By Miguel Madeira, at 10:06 da manhã
Caro Zé,
Algumas notas sobre o que disseste, com a ressalva natural de não ser a minha área de especialidade:
"porque a noção de culpa, sem a qual não há responsabilidade penal, pressupôe alguma consciência de ilicitude que, por sua vez, pressupôe o tal consenso."
Julgo que aqui simplificas um pouco. Isto será verdade na maior parte das vezes, mas também há casos em que existe punição onde não exista intenção (dolo), e é um pouco subjectivo falar de "culpa". Se acharmos que sempre que há um crime / delito, há culpa, então isso é tautológico, e tu tens razão, mas isso não acrescenta muito (em termos da definição de "culpa"). Mas não tem de acrescentar, estou só a analisar a questão. Intenção, responsabilidade, consciência, premeditação, etc, entrarão todos aqui para o cocktail da "culpa", e não é demais lembrar o Dostoievksi.
"Desta ideia retira-se algumas ideias: a) é a consciência moral da comunidade que conforma o direito penal e não o direito penal que conforma os costumes;"
Diria que sim, primordialmente e "antes de tudo" (ou "inicialmente"). Mas depois há, naturalmente, uma evolução onde ambas se influenciam uma à outra. Embora tu possas "ir atrás" e dizer que na origem está sempre a consciência moral da comunidade, eu preferiria ser mais holístico e dizer que o fenómeno não é tanto de "causa-efeito" mas se vai intercruzando.
"b) idealmente a consciência moral de uma comunidade deve conformar-se à ética objectiva, sendo tanto mais civilizada uma comunidade quanto mais essa adequação for real."
Percebo o teu ponto, mas o "ética objectiva" é algo um pouco estranhao para mim... e que poderá abrir facilmente caminho a totalitarismos. O que é a ética objectiva, Zé? Os 10 mandamentos "revelados" no Monte Sinai? Aquilo a que chegamos através da razão? Os nossos impulsos? Julgo que é perigoso usar aqui o "obejctivo"...
"É, pois, possível comparar direitos penais atendendo a um critério ético objectivo;"
VOlto a discordar do termo objetivo aqui, mas ok, tomo-o como "o mais objectivo/imparcial possível", embora não esteja seguro de que isso faça grande sentido no contexto.
"o que não me parece sensato é pensar-se que o direito penal pode ser eficaz e justo se completamente contrário às crenças maioritárias numa comunidade; nem tão pouco que tal adequação direito penal-ética objectiva se dá por obra e graça do legislador e não por uma evolução moral da própria comunidade."
Concordo.
"3) No caso de suicídio, tens razão quanto à possibilidade de prevenção; também tens razão quanto à possibilidade de os suicidas procurarem ser mais eficazes em caso de criminalização do suicídio. Mas o que prevaleceu no caso português foi a ideia de justiça: seria pura e simplesmente injusto punir o suicida falhado quando se pune o suicida talentoso ou, pelo menos, bem sucedido."
Discordo porque, como disse, há uma impossibilidade ontológica de criminalizar o suicida "talentoso", e como tal a comparação que tu fazes é abusiva. Simplesmente, há uma *descontinuidade* ontológica entre o suicida falhado e o sucedido, pelo que o argumento de que "seria *mais* isto ou aquilo" não se aplica.
By Tiago Mendes, at 10:34 da manhã
"Penso que na Inglaterra do século XIX a pena era exactamente essa."
Ou, pelo menos, era o que um professor meu (licenciado em Direito) dizia. Mas como fiz agora uma pesquisa na Net não vi qualquer referencia a isso, se calhar era ele que estava a inventar.
By Miguel Madeira, at 10:43 da manhã
«Penso que na Inglaterra do século XIX a pena era exactamente essa.
Ou, pelo menos, era o que um professor meu (licenciado em Direito) dizia. Mas como fiz agora uma pesquisa na Net não vi qualquer referencia a isso, se calhar era ele que estava a inventar.»
Não estava a inventar, não. Existe, aliás, um relato famoso e vagamente caricato. Um homem que tentara suicidar-se por degolação é condenado à morte pela Coroa. À época, esta pena (neste caso, pelo menos) era executada por enforcamento. Na sua execução, depois de apertado o nó, o suicida começa a respirar pelo buraco que deixara aquando da tentativa de suicídio. Resumindo: soltam a corda, descem o pobre coitado, cosem-no bem cosidinho e finalmente enforcam-no.
By Anónimo, at 10:56 da manhã
Aí está uma história de facto caricata... mas a mostrar a forma "profissional" como os ingleses lidam com as regras que os regem (ainda que discordemos delas).
By Tiago Mendes, at 11:11 da manhã
creio que actos homossexuais com adolescentes são puníveis pela lei [ou pelo menos têm uma pena maior]enquanto que os actos heterossexuais com adolescentes não. se isto não é moralizante...
estou com muitos trabalhos em mãos, e a "chocar"[como se diz na minha terra!] uma gripe [aviária?, lá para o fds tratarei de pensar melhor sobre o assunto...
e miguel obrigada pela dica! ;)
By aL, at 2:23 da tarde
Alaíde: claro que a lei reflecte a moral. O que eu disse é que a lei não reflecte TODA a moral. Mais do que isto - que é uma constatação ou juízo positivo - é possível ir mais longe, e dizer que a lei NÃO DEVE reflectir toda a moral, muito menos a virtude, que é uma sub-categoria (superior) da moral.
Simplesmente, NEM TODA a moral tem de estar na lei. Entendomo-nos, ou não? :)
PS: as melhoras.
By Tiago Mendes, at 2:31 da tarde
Isto tá-se a tornar enfadonho... Já se começa a discutir o sexo dos anjos...
By Anónimo, at 4:21 da tarde
"Isto tá-se a tornar enfadonho..."
Obrigado pela mais valia.
"Já se começa a discutir o sexo dos anjos..."
E não só dos anjos, esteja atento...
By Tiago Mendes, at 4:23 da tarde
pelo que me lembro das minhas aulas de direito, o suicidio efectivado é crime! claro que o morto não sentirá as consequências, mas não deixa de ser crime. o que se pressupoe é que o individuo é mais do que o corpo e por isso o seu BOM NOME é responsabilizado.
vamos por de lado a questão de efeitos materiais que possam ocorrer aquando o suicidio.
ainda procurei rápidamente a legislação, mas não encontrei e ...fica para proxima.
By Anónimo, at 7:17 da tarde
Caro Void,
O suicídio já não é crime pelas razões que apontei.
Caro Tiago,
Respondo mais tarde. Tenho muitos esclarecimentos a fazer.:)
Um abraço,
By Anónimo, at 8:00 da tarde
Caro Tiago,
Alguns esclarecimentos:
1- O conceito de culpa em direito penal engloba tanto o dolo como a negligência. Nesta última, a censura devém ou do facto de o agente representar o perigo de a sua conduta causar um dano e levianamente acreditar que o risco não se concretizará ou no facto de nem sequer representar o perigo de a conduta provocar o dano, quando o deveria ter representado e, consequentemente não ter praticado o acto em causa.
Ambos os tipos de negligência representam uma conduta leviana, irresponsável do agente e, como tal, censurável. É nisto que se traduz o juízo de culpa.
2. A negligência só releva nos casos previstos na lei; muitos crimes são exclusivamente dolosos.
3. Acho que não relevas suficientemente o facto de o direito penal: a) o facto de a criminalização de uma conduta pressupor que quem a tenha possa vir a ser punido com pena de prisão com a consequente perda de liberdade; b) que, havendo uma restrição excepcional da liberdade de quem prevarica, o direito penal só pode ser entendido como última ratio, isto é, uma resposta quando todas as outras respostas falham.
Tendo isto em conta, só devem ser criminalizadas as condutas que são consensualmente tidas como desvaliosas pela grande maioria dos membros da comunidade. Outra solução seria incompreensível à luz de valores de justiça e de respeito pela liberdade. Em última caso, um direito penal ao arrepio do sentimento da comunidade é necessariamente um direito penal autoritário.
By Anónimo, at 12:05 da manhã
Quanto ao uso do termo objectivo:
4. Independentemente das valorações éticas de cada comunidade, o raciocínio ético de cada indivíduo é sempre objectivo, no sentido de que abstrai das circunstâncias que o rodeiam. Não conseguimos não pensar as questões éticas de um ponto de vista objectivo. Não conseguimos pensar as questões éticas de um outro ponto de vista que não o ponto de vista objectivo (a perspectiva do olho de Deus) sem nos contradizermos. O relativismo é uma má teoria, porque contraditória e porque elimina qualquer hipótese de crítica e discussão de ideias.
O que tentei explicar é que os resultados a quem chegamos pelo simples raciocínio ético não é transportável para o direito penal sem mais. Como também já disse, a criminalização de condutas obedece a critérios primordialmente jurídicos, o que não significa que não tenha um substrato ético.
Quanto ao suicídio:
5. Pois, mas parece-me derivar dessa impossibilidade ontológica de punir o suicida bem sucedido a injustiça de punir o suicida inábil.
É uma questão interessante. Em todo o caso, o argumento só por si não serve para defender qualquer das soluções (criminalização/não criminalização). Teríamos que discutir outras questões, nomeadamente a necessidade de prevenção da prática do suicídio, o desvalor ético da tentativa de suicídio, etc..
Um abraço,
By Anónimo, at 12:24 da manhã
Oops, caro Tiago, desculpa-me as gralhas no meu texto. São demasiadas para corrigir.:)
By Anónimo, at 12:26 da manhã
José Barros, quer-me parecer que vai aí uma grande confusão entre ilicitude e culpa (mas admito que isso seja influência da Escola de Coimbra). Desde quando é que dolo e negligência encerram um juízo sobre a culpa?
By Anónimo, at 1:05 da tarde
Caro anónimo,
Eu não fiz a distinção entre ilicitude e culpa pela simples facto de estar a conversar com um leigo na matéria - o Tiago - e não querer complicar em demasia as coisas. Mas concedo que a confusão decorra da exposição.
Essencialmente quando falo de crimes negligentes ou dolosos estou a falar ao nível da ilicitude (por exemplo, no ponto 2 do meu último comentário); nos outros casos, estou a falar de culpa (no ponto 1 do meu comentário).
A distinção ilicitude-culpa devém do facto de no primeiro caso objecto da censura ser o acto e a censura ser abstracta e de, no segundo caso, objecto da censura ser a conduta do agente e a censura ser concreta. A ilicitude não encerra obviamente um juízo de culpa, mas um juízo de censura sobre o acto considerado em abstracto (por exemplo, o acto de homicídio doloso ou o acto de homicídio negligente).
By Anónimo, at 3:31 da tarde
Assim já nos entendemos. :)
By Anónimo, at 5:24 da tarde
Obrigado pelos comentarios, acho que a coisa ficou clara. Tenho umas coisas a acrescentar, talvez as faca mais logo. A tematica da "Filosofia do Direito" e' muito interessante e algo que me interessa, mais do que propriamente submergir na linguagem juridica pura e dura e por vezes desnecessariamente (em foruns de discussao mais abrangente) hermetica.
PS: Ze', cuidado com a tentacao de cair na falacia das dicotomias inexistentes: ha' um continuo entre "leigo" e "especialista" que nao e' de menosprezar :-)
By Tiago Mendes, at 6:25 da tarde
PS: Ze', cuidado com a tentacao de cair na falacia das dicotomias inexistentes: ha' um continuo entre "leigo" e "especialista" que nao e' de menosprezar :-)
Caro Tiago,
Estou de acordo contigo.
Hesitei na utilização do termo "leigo" nessa frase. Não há nada no direito (ou em qualquer outra área) que um "leigo" não possa saber e até compreender melhor do que um "especialista". Daí que a distinção seja apenas tendencial. E também perigosa, porque fomenta uma ideia de autoridade que leva ao acriticismo.
By Anónimo, at 7:05 da tarde
A ideia de "autoridade" e' real e substantiva - no problems with that. E eu compreendi, naturalmente, a "simplificacao" redutora do leio/especialista. Tudo ok. Concordo com o perigo que por vezes ha' de se levar a coisa para um "acriticismo", sobretudo se isso for feito atraves dum hermetismo que pode ser desnecessario (nao no caso, atencao) e minimizador da possibilidade de debate.
So' discordo quando dizes:
"Não há nada no direito (ou em qualquer outra área) que um "leigo" não possa saber e até compreender melhor do que um "especialista".
Para puxar a brasa 'a minha sardinha, cito alguns temas em geral mal compreendidos:
- lei dos grandes numeros
- dilema dos prisioneiros
- bem publico
- teorema de impossibilidade de Arrow
- conceito de infinito
- teorema de Coase
Mal de nos se nao houvesse alguma "autoridade" a advir da especializacao! O meu ponto era um "small remark" - com um smiley no fim para ajudar a contextualizar o "tom" :-)
Relidos os teus comentarios, acho que nao discordo de nada, e sublinharia este:
"O que tentei explicar é que os resultados a quem chegamos pelo simples raciocínio ético não é transportável para o direito penal sem mais. Como também já disse, a criminalização de condutas obedece a critérios primordialmente jurídicos, o que não significa que não tenha um substrato ético."
O que reforca o ponto que ha' uma base moral/etica na lei, mas nao podemos confundir as duas coisas. [Bem sei que isto e' mais ou menos "obvio" para pessoas de Direito, Filosofia, Politica, entre outras, mas nao e' uma mensagem clara para a populacao em geral - o que ate' se compreende].
Abraco,
By Tiago Mendes, at 7:15 da tarde
"mas nao e' uma mensagem clara para a populacao em geral - o que ate' se compreende]."
Este "o que ate' se compreende" tem por base: 1) o facto de nao termos uma tradicao onde o costume tenha muito peso; 2) o facto de nao termos uma tradicao liberal - onde a separacao da lei e da etica e' mais obvia; 3) o facto de termos um passado recente de experiencias "socialistas" conducentes 'a "redencao moral" da "comunidade"; 4) o peso da religiao, onde os "mandamentos" e demais leis morais tomam a forma escrita, que se advininha facilmente transponivel para a lei geral duma sociedade; 5) o facto do tema nao ser, mesmo tirando os pontos anteriores, "obvio" para quem nunca tenha estudado a materia (por exemplo, pessoas das ciencias naturais sem interesse em politica/direito).
By Tiago Mendes, at 7:19 da tarde
Caro Tiago,
Pois, é para isso que tenho penar 5 anos num curso (e mais 2 se quiser fazer mestrado).:)
Simplesmente, há que ter em conta que muitos licenciados em direito não sabem mais de direito do que muitos economistas ou sapateiros. O canudo não dá sabedoria e é perfeitamente possível fazer um curso com nota mínima de passagem sem que se compreenda as matérias. É por isso que a média de curso tem tanta importância na escolha que o mercado faz.
A autoridade advém da sabedoria e não do canudo. Geralmente, o canudo traduzirá alguma sabedoria, mas, como disse, muitas vezes, não é o caso.
Quanto à ideia que defendi e que tu citas, ela tem importância no caso especial do aborto. Parece-me um típico caso de descontinuidade entre a moral e o direito penal, na medida em que me parece haver argumentos éticos fortes para que se diga que o aborto é imoral e argumentos jurídicos fortes para descriminalizar o crime respectivo.
By Anónimo, at 7:37 da tarde
Penso que analisas bem as razões porque a distinção entre moral e direito não é suficientemente bem compreendida por maior parte das pessoas.
E tens aí um bom ponto de partida para um texto...:)
By Anónimo, at 7:40 da tarde
"Quanto à ideia que defendi e que tu citas, ela tem importância no caso especial do aborto. Parece-me um típico caso de descontinuidade entre a moral e o direito penal, na medida em que me parece haver argumentos éticos fortes para que se diga que o aborto é imoral e argumentos jurídicos fortes para descriminalizar o crime respectivo."
E' um bom exemplo, de facto. Acho que sabes a minha opiniao sobre o aborto, anyways. [Archives de Dezembro/Novembro, julgo].
"E tens aí um bom ponto de partida para um texto...:)"
Indeed! Mas vou mante-lo como um "would-be" post for the next few months or so ;)
By Tiago Mendes, at 7:44 da tarde
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