aforismos e afins

09 fevereiro 2006

Casamentos e seguros (adenda)

Julgo que a mensagem que pretendi transmitir neste artigo não ficou totalmente clara. Recorro, então, ao silogismo*. A ideia era esta:

Premissa 1 (Juízo de valor): É bom que a lei consagre "propostas relacionais" efectivamente diferentes do casamento.

Premissa 2 (Facto): A união de facto representa uma diferenciação "mínima" face ao casamento.

Conclusão (Recomendação): A união de facto não deve ser alterada de modo a conter "mais" direitos, sob pena de perder o seu carácter diferenciador face ao casamento.

A primeira premissa é naturalmente discutível. Quanto a mim, é bom que haja alguma diversidade no "menu de relações" sancionadas pelo estado. Este não deve ser demasiado grande, no entanto, quer pelos custos físicos que isso tem, quer pelo facto de tornar a diferenciação menos visível. Se não podem existir muitas alternativas, deve (já há) existir mais do que uma (o casamento, instituição a preservar).

A segunda premissa é o argumento que exponho no segundo parágrafo do artigo. O ponto é simples: se para haver "alguma" diferenciação entre o casamento e outra forma de contrato X tem de haver uma diferença na visibilidade social (VS), mas também em algo mais substantivo (porque só "fogo de vista" não chega), e isso é provavelmente a independência financeira (IF), então, VS e IF estão, mais do que positivamente correlacionadas entre si, ligadas por um fio lógico. Ou seja, se há "alguma" diferenciação, nela têm de estar incluídas necessariamente VS e IF: a primeira implica a segunda.

Ora, a união de facto consubstancia quer VS quer IF. Logo, ela representa a diferenciação "mínima" face ao casamento, e, como tal, não deve ser alterada de modo a incluir "mais" direitos, mas, quando muito, "menos" direitos (no que deveria resultar uma nova "proposta" e não uma alteração da mesma).

[Ressalva: claro que há aqui um exagero no encadeamento lógico da ideia de diferenciação, o que não deve ser levado literalmente mas sim como forma de, através duma pequena simplicação, entender o que está verdadeiramente em causa.]

A conclusão (dadas as premissas) é imediata e parece-me não ser discutível. A ideia expressa na frase «Sendo certo que isto não se aplica a duas pessoas do mesmo sexo, importa ter presente que a necessidade de mudança do quadro legislativo que versa os relacionamentos homossexuais não deve pôr em causa os actuais contornos da união de facto.» é fulcral - e parece-me que deu azo a múltiplas interpretações. Talvez tenha faltado um pouco de contexto para tornar isto mais claro. O ponto é este: embora a regulamentação esteja ainda algo confusa, já é possível haver uniões de facto de pessoas do mesmo sexo em Portugal. O casamento é que está vedado.

Ora, houve algumas pessoas, como Lobo Xavier e Guilherme da Silva, depois apoiados por Eduardo Pitta e Constança Cunha e Sá, que defenderam que a união de facto devia ter direitos alargados. Nos caso dos dois primeiros, isto passa claramente como um "tudo por tudo" (perfeitamente legítimo, atenção) para evitar que os homossexuais tenham acesso ao casamento. No caso dos dois últimos, parece-me ser genuína preocupação com uma situação de "injustiça/discriminação", que eu partilho, embora não tire daí as mesmas exactas conclusões.

Em qualquer dos casos - e salvaguardadas as diferenças nas "intenções" dos sujeitos indicados, que valem, obviamente, muito, para não dizer "tudo" - ou se esquecem ou se desvalorizam os direitos adquiridos por quem já está unido de facto e conta com um certo leque de direitos e deveres. No caso de ALX e GS, estamos perante um "rebuçado" dado aos activistas gay para ver se eles param de "berrar", através da expansão de direitos incluídos actualmente na união de facto. Eu sou contra isso. Acho que a alteração deve vir por outra forma que não esta. O valor da "variedade" no tal "menu de propostas" é grande. E as expectativas que em vive actualmente em união de facto devem ter algum peso também. No caso de EP e CCS, eu diria que as baterias devem ser focadas numa alteração mais "corajosa", semelhante ao que já existe noutros países, em jeito de "ruptura" e não de "alargamento" do que já existe. Que é como quem diz, ter presente o «Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura». E os portugueses, com a sua conhecida tolerância milenar pelo outro, são um bocdinho duros de roer, é um facto. Há que perserverar.

A analogia com os "seguros" é usada porque qualquer relação humana tem, pelo menos em parte, como objectivo precaver contra a "incerteza" que o futuro nos traz, e envolve cedências de parte a parte. O tal "prémio" (deveres) e "assistência" (direitos) de que falo no artigo. A ideia da diferenciação e da variedade é que, tal como no mercado de seguros, deve existir alguma possibilidade de escolha, de forma a que as pessoas se "auto-seleccionem" consoante as suas preferências, ou seja, que escolham o "pacote" que mais lhes agradar. Umas serão mais avessas ao risco, outras menos. Umas mais independentes, outras menos. Há quem prefira casar, há quem prefira uma união de facto, há quem prefira ficar solteiro. Permitir real liberdade de escolha a pessoas (neste caso, casais) que têm preferências diferentes, é trazer valor acrescentado à coisa.

Concluindo, as mensagens são duas:

Primeira - e prioritária: a diferenciação efectiva de diferentes regimes de coabitação deve ser preservada, porque essa variedade aumenta o bem-estar, via uma acrescida liberdade de escolha;

Segunda - e subsidiária: mais direitos para casais do mesmo sexo, sim, mas deixem as uniões de facto - quer versem sobre relacionamentos heterossexuais quer homossexuais - em paz.

*uma pequena nota, em jeito de desabafo: o artigo que escrevi tem cerca de 2.700 caracteres, e esta "adenda" tem quase 5.400 - o dobro, portanto. Ou seja, há muito, mas mesmo muito, por aprender.

8 Comments:

  • Li 1º no DE e o artigo parece-me óbvio se o objectivo for discutir a possível alteração da lei no q se refere ao estatuto união de facto/casamento. Se tivermos em conta a tua conclusão em q dá especial enfâse para a qustão das uniões homossexuais, parece-me q o teu artigo é propositadamente ambíguo neste sentido. O q eu pretendo dizer é q a maioria qd ouve falar em alteração da legislação de uniões de facto e etc. remete p mais direitos dos casais homossexuais, mas tu no teu artigo legitimamente fizeste o contrário, logo acho q dps a tua conclusão dá especial destaque a um pormenor q passa despercebido no artigo.

    By Anonymous Anónimo, at 12:32 da tarde  

  • Mas lendo melhor sem dúvida q és bom a escrever... devias fazer um filme :-)

    By Anonymous Anónimo, at 12:35 da tarde  

  • "Se tivermos em conta a tua conclusão em q dá especial enfâse para a qustão das uniões homossexuais, parece-me q o teu artigo é propositadamente ambíguo neste sentido."

    Importa dizer que ele nao da' NECESSARIAMENTE "especial enfase".

    Primeiro que tudo, visa "cobre um flanco" argumentativo, digamos assim. Repara que se eu nao mencionasse isso, o argumento seria facil de atacar: "Ah, mas isso nao se aplica aos homossexuais, porque eles nao tem possibilidade de escolha".

    Com uma importancia menor (nao ha nada mais importante, neste tipo de escritos, que passar uma mensagem coerente - pelo menos para mim), esta o facto de eu ser, efectivamente, "algo ambiguo"... ma non troppo. Repara que eu falo na "necessidade" (de alterar a lei que versa sobre os relacionamentos homossexuais), enquanto poderia ter optado pelo mais distante "vontade" - apenas constatando o que se ve por ai.

    Eu gosto e' de separar as coisas: o argumento principal para mim NAO tem a ver com a legislacao sobre os relacionamentos homossexuais mas com a liberdade de escolha EM GERAL. A questao dos homossexuais e' importante porque traz isso para a mesa (hoje em dia). Ou melhor, "trouxe". Dai que fosse algo hipocrita nao mencionar qual a "razao de ser" do artigo. O limite de palavras tambem nao permitiria mais esclarecimentos.

    " logo acho q dps a tua conclusão dá especial destaque a um pormenor q passa despercebido no artigo."

    Exactamente, o ponto e' mesmo esse, ja' que a questao dos homossexuais e' "acessoria" mas nao "fulcral". Isto nao quer dizer que os direitos deles sejam menos importantes, mas apenas que isso nao e' suficiente para alterar a "regra", que deve ser a de manter uma "diferenciacao" efectiva. E, se me e' permitido, e para os bons entendedores que entendem meias palavras, acabo por sugerir tambem algum apoio a um NOVO enquadramento de certo tipo de relacionamentos, ao usar "necessidade" em lugar de (por exemplo) "vontade".

    Obrigado pelo comentario, que ajuda a esclarecer e a fazer-me escrever mais umas dezenas de caracteres - o que da' sempre muito gosto.

    By Blogger Tiago Mendes, at 1:52 da tarde  

  • "Mas lendo melhor sem dúvida q és bom a escrever... devias fazer um filme :-)"

    Agradeco o reparo simpatico, mas estou bem consciente de quais sao as minhas "vantagens comparativas" e acho que um filme meu seria uma seca total, todo coerente e encadeadinho :)

    Aproveito, a proposito, para deixar um aforismo de Einstein:

    "Imagination is more important than knowledge".

    Deixo a interpretacao a cada um.

    By Blogger Tiago Mendes, at 2:17 da tarde  

  • Caro, tens toda a razão, percebi completamente o teu ponto de vista, tenho pena de não poder discordar de ti pq me daria um certo prazer encontrar argumentos p a discussão (por outro lado deve ser mto complicado discutir ctg) :)
    Infelizmente não sou um bom entendedor (tb a minha especialização não tem mto a ver c as palavras) e logo meia-palavra p mim não bastou, mas agora está percebido. Tiro o chapéu... Cumprimentos

    By Anonymous Anónimo, at 2:25 da tarde  

  • Obrigado. E volta sempre (se e' que nao ja' andavas), sobretudo quando tiveres alguma (real) discordancia, para animar a casa.

    By Blogger Tiago Mendes, at 2:32 da tarde  

  • apenas uma observação:
    Acho que deverias colocar isso dos casamentos homosexuais de lado, pelo menos agora.
    porque o teu artigo, tem já uma ideia muito forte que deve ser levada á frente: a escolha do pacote de coabitação, onde o casamento e união de facto são apenas nomes para uma dada combinação opções seleccionadas, entre as restantes combinações existentes, mas totalmente ausentes no regime jurídico.
    tens antes questão da enumeração várias opções. quais são elas.
    depois queres colocar a questão quais as pessoas que se podem candidatar á escolha reconhecida das várias opções. deve ser deixado para mais tarde.
    até porque muito naturalmente, se isso acontecesse haveria certamente a imposição de inviabilidade de escolha de certas opções.
    ao levantares este ultimo ponto, como o fizeste no artigo, a exigência de limite é imperativo, temos terreno pantanoso, no casamento homessexual, na coabitação reconhecida por mais do 2 pessoas, a prevalência de direitos e obrigações aquando quebra de contrato, etc.

    repare que não se trata de queres opinar sobre se concordo ou não com os casamentos homosexuais, ou o alargamento de “direitos“ no modelo actual, nada disso!

    By Anonymous Anónimo, at 7:51 da tarde  

  • Void: percebo perfeitamente o ponto. Referi, "en passant", o tema, por duas razões, como referi: para não ignorar o contexto actual da questão, e para deixar uns "pozinhos" sobre o assunto.

    By Blogger Tiago Mendes, at 9:33 da tarde  

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