aforismos e afins

22 setembro 2005

Erotismo e Sexualidade

Este belíssimo texto do meu caro jmnk tem desde há tempos a haver um comentário meu, que não chegou antes apenas por achar que alguma frieza e racionalidade da minha parte podem ser desapropriadas como resposta a um texto cuja poesia é evidente. Mas, enfim, vamos a ele. Primeiro por partes, e depois o todo:

1. "Não há uma diferença essencial entre erotismo e sexualidade; o erotismo é sexualidade socializada. A sua complexidade - rituais, cerimónias - começa por ter uma função social; o que distingue um acto sexual de um acto erótico é que no primeiro, a Natureza serve a espécie, enquanto no segundo, a sociedade humana é servida pela Natureza."

Concordo apenas com uma coisa aqui: que a "sexualidade" - que é simplesmente um acto físico em si - é uma coisa "natural" e cuja origem está na propagação da espécie. Isso é, de resto, comum a todos os animais (sexuados). O que distingue então o erotismo? Aqui é que a questão é mais complexa. Porque temos que olhar para a "causa" e perceber aquilo que está (positivamente) correlacionado com essa causa - que chamaríamos de "causa primordial" - mas que tem apenas com ela uma "relação espúria" - e não causal. Se o erotismo só existe no contexto humano, é bem provável que a diferença entre erotismo e sexualidade seja simplesmente a diferença (primordial) entre o homem e o animal.

Essa diferença - quanto a mim - chama-se "consciência"; e não "inteligência" ou "racionalidade". Estas últimas são condições necessárias mas não suficientes para a primeira, que como tal é mais restritiva - mais exacta. [Não vou alongar-me aqui, mas poderíamos voltar ao tema da inteligência artificial e falar da formas de "inteligência inconsciente"]. Por isso, eu discordo quando dizes que "não há uma diferença essencial" e que essa diferença está no facto de o erotismo ser "sexualidade socializada". Aqui, como em tantas outras coisas, sou muito individualista: não acho que o sexo sirva a sociedade. A sexualidade é sempre uma experiência individual, passível de ser uma experiência "erótica" se tiver outros ingredientes. Quando se torna uma experiência "social" (claro que não falo de "bacanais" e afins, mas sim da dimensão social da sexualidade, a que tu te referes, penso eu) isso é, de qualquer modo, acessório - uma consequênia de segundo grau, se quiseres.

De resto, quando dizes que os rituais começam por ter uma dimensão social, eu pergunto-te: se dois adolescentes vivessem sozinhos numa ilha deserta, seria possível eles viverem uma experiência erótica ou apenas sexual? Em que sentido falarias aqui do "ritual" mais ou menos socializado da sexualidade? Eu percebo que hajam certas aprendizagens que se fazem e que não nascem connosco. Mas eu quero crer que mesmo um homem des-socializado seria capaz de ter alguma carga erótica na sua vivência sexual. Isto se fosse mesmo "homem" e não animal - e não tenho como seguro que um homem que nasça e viva numa ilha deserta se diferencie do animal, mas isso é outra questão, de resto muito interessante e muito complexa.

Mas isto leva-nos à questão da diferença do erotismo. Quanto a mim, erotismo é simplesmente sexualidade consciente. Consciente do que se faz, do que se sente, consciente do outro, dele próprio; até consciente que se poderá estar - durante o acto em si - inconsciente. Esta consciência proporciona miutas coisas, como a "arte" de fazer amor, a criatividade ao serviço dos amantes, até a racionalização da relação amorosa-sexual. Ou, se formos mais longe - a sua "sacralização". Mas, volto a dizer, tudo isto são consequências não necessárias do facto de haver consciência; são oportunidades, não consequências imediatas.

Um exemplo que não estará fora de moda (sobretudo para "desperate housewives" e afins) é o sexo "puro e duro" (ou "sexo à bruta"): repara que mesmo neste caso, apesar de o acto em si ser uma mímica do mundo selvagem, em que sentido é que não é "erotismo"? Só porque (aparentemente) não há carinho nem diálogo nem altruísmos pelo parceiro que nunca mais se vem? Em que sentido é que a cena mítica no filme "Emmanuelle", quando a rapariga é oferecida como troféu ao campeão de Thai Boxing, como "mero" pedaço de carne, não é erótica? Só porque o sexo ali é puramente animal? "Emmanuelle" é o grande filme erótico por natureza - porque é nele que uma menina desperta conscientemente para a riqueza e complexidade da sexualidade, pela mão do seu "amante-tutor".

Dito isto, numa coisa eu tenho que concordar contigo: na medida em que o homem é um ser social - e a sexualidade tem muito de aprendizagem - também ela será reflexo dessa socialização - eu acho é que exageras na causalidade e na enfatisação no factor socializante. A sexualidade é animalidade, ponto final. O erotismo é sexualidade consciente. Embora também seja verdade que no acto sexual haja um esbatimento da consciência - afinal o que busca o homem no acto amoroso senão um certo alívio existencial, um voo sem destino través do outro?

2. "Um dos fins do erotismo é domar o sexo e inseri-lo na sociedade. Sem sexo não há sociedade pois não há procriação; mas o sexo também ameaça a sociedade. É instinto: tremor pânico, explosão vital. É um vulcão que ameaça cobrir a sociedade com uma erupção de sangue e sémen. O sexo é subversivo: ignora as classes e hierarquias, as artes e as ciências, o dia e a noite. O erotismo, com seu conjunto de proibições - mágicas, morais, legais, económicas e outras - defende a sociedade dos assaltos da sexualidade, mas também nega a função reprodutiva. É caprichoso servidor de vida e morte."

O erotismo não tem fim, quanto a mim. "Beber sem sede e fazer amor constantemente, minha senhora, apenas isso nos diferencia dos animais" [Beaumarchais]. O homem não só tem capacidade de escolha como isso significa que muitas das aparentes "finalidades" de certos acto são conclusões exageradas. Concordo que o sexo ameaça a sociedade - e a tua descrição é perfeita e bela. Mas discordo que o erotismo defenda a sociedade dos assaltos da sexualidade - antes pelo contrário, e em concordância com o que acabaras de dizer - até ajuda a isso. Porquê? Porque o homem gosta de transgredir. No fundo, o homem impõe regras sociais também para as não cumprir e se sentir até mais ou menos priviligiado por o poder fazer. Aliás, como uma das manifestações do erotismo é a "pura e dura" animalidade (ou sexualidade), por definição não a pode proteger. A função reprodutiva não é negada; é apenas "posta de parte". O que faz todo o sentido, já que para os homens - como diz a frase acima citada - o sexo não é para procriação, mas sim "quando o homem quiser". (E felizmente mais vezes que o Natal). Que é caprichoso, é: porque é viciante. Por isso o homem tem que se precaver contra abusos.

3. "Mas o erotismo é algo mais. É sexualidade transfigurada: metáfora. O agente que move tanto o acto erótico como o poético é a imaginação. É a potência que transfigura o sexo em cerimónia e rito, a linguagem em ritmo e metáfora. A imagem poética é um abraço de realidades opostas e a rima, uma cópula de sons; a poesia erotiza a linguagem e o mundo porque ela mesma, no seu modo de operar, é já erotismo. E do mesmo modo: o erotismo é uma metáfora da sexualidade."

O erotismo pode ser tudo: metáfora, hipérbole, anáfora - a figura de estilo que queiras - da sexualidade. Exactamente por ter o ingrediente da imaginação. Mas é, concordo, sobretudo uma metáfora, por ser uma transposição da sexualidade animal para o contexto mais rico dos humanos, onde a linguagem - a grande diferença que se segue à consciência - tem um papel fulcral. Os sons, as danças, os sorrisos - tudo o que referes.

De resto, todo o texto, mas em especial este último parágrafo, são de uma beleza avassaladora. E é por isso que me sinto honestamente confrangido por escrever coisa tão desinteressante e ainda por cima tão extensa. Espero não ter sido demasiado literal e não ter desvirtuado o sentido do teu texto. Um abraço,

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