aforismos e afins

09 dezembro 2005

Laicidade é laicidade

Surpreendi-me (negativamente) com João Miguel Tavares da semana passada e pasmo com o seguimento desta semana. É bem verdade que não há pior cego que aquele que não quer ver.

Surpreendi-me (positivamente) com a excelente crónica de hoje de Pedro Lomba, que no nosso contexto é uma pedrada no charco monumental na direita portuguesa, que não consegue ou não quer aceitar as implicações da laicidade (formal) do estado, sobretudo na escola pública, e que adora atirar-se de corpo e alma para uma luta constante de barricada. Para um liberal que gosta de palavras e linguagem, é difícil não ter sempre presente a conhecida frase de Berlin "A liberdade é liberdade, não é (...)". Foi isso que mais uma vez me ocorreu com o artigo de Pedro Lomba, que merece citação integral, não obstante estar disponível online.

«Laicidade é laicidade. Presumo que às vezes custe reconhecer isto, mas um Estado laico e um ensino laico não podem consentir a presença de símbolos religiosos dentro de escolas públicas. A História, a civilização, a cultura explicam alguma coisa, mas não explicam tudo. E ao contrário do que pensam muitos daqueles que se manifestaram contra a decisão do ministério de mandar retirar os crucifixos, o argumento da História favorece neste caso a retirada, não a permanência dos crucifixos. É óbvio que a presença de crucifixos nas escolas é um vestígio de um tempo em que o ensino era religioso e em que a laicidade do ensino não estava por isso garantida.

De resto, como sempre não somos originais. Em 1980, por exemplo, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos decidiu que a exibição dos 10 Mandamentos em salas de aula violava a neutralidade religiosa da Constituição americana. Precisamente, os juízes afirmaram que a razão de ser da presença dos 10 Mandamentos nas aulas era essencialmente religiosa e não secular. Em Junho deste ano, o mesmo Supremo Tribunal teve que decidir se a exibição em edifícios ou propriedades do Estado de placas contendo os 10 Mandamentos era ou não contrária à mesma neutralidade religiosa. Em dois casos distintos, os juízes concluíram de um modo distinto a propósito da exibição dos 10 Mandamentos em tribunais do Kentucky, disseram que havia violação daquela neutralidade; mas já sobre um antigo monumento do Texas a sentença foi outra e o Supremo americano defendeu não existir violação da obrigação de neutralidade.

O critério de separação entre os símbolos religiosos que se podem ou não publicamente exibir passa por valorizar o propósito, o sentido e o contexto da exibição. Se esse sentido e contexto forem religiosos, a exibição não pode ser permitida. Não é simples de executar, mas é uma forma de respeitar a laicidade no espaço público sem com isso forçar a privatização da religião.»

Está cá tudo. A hermeneûtica que muitos negam - a importância do contexto da escola pública. A dificuldade que muitos têm em abordar a questão sem recorrer a inúmeras falácias, como as analogias sem sentido (como a dos feriados religiosos), o fugir para outros assuntos (trazendo à discussão outras questões relacionadas com o ensino), ou o enveredar num argumento em bola de neve (que isto levaria a múltiplas outras "jacobinices"). Um exemplo da América cada vez mais radical que certa direita abraça sempre e totalmente, com uma independência assinalável. A concessão de que o problema é complexo e que a medida não é fácil de executar. A convicção de que a questão de princípio não pode ser subalternizada por joguetes políticos ou por uma dificuldade maior ou menor em levar essa medida à prática.

Pelas ideias e o sentido delas no nosso contexto, só posso dizer ao Pedro Lomba: bravo, bravo, bravo. Três vezes bravo.

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