O Intelectual (0/10)
Uma pessoa culta não é uma pessoa que lê muito, nem que sabe muito, mas que conhece muito. Um intelectual não tem que ser uma pessoa culta. Nem sequer super inteligente. Ser intelectual não é uma questão de quantidade - de ter mais ou menos capacidade de raciocínio e conhecimento -mas antes de qualidade. Ser intelectual é uma postura; é uma forma de estar na vida. Ser mais inteligente ajuda porque permite viver mais intensamente essa forma de estar na vida. E ser mais culto ajuda porque, qualquer que seja a intensidade que essa forma de estar tem, ela poderá incidir sobre uma maior variedade de temas. Mas nenhuma destas duas qualidades constitui condição necessária, nem tão-pouco suficiente, para se ser um intelectual. Há correlações (positivas), mas não causalidade.
O dicionário que sugeri é muito pobre: sugere que ser um intelectual (substantivo) é ter uma actividade onde o uso do intelecto é preponderante; ou pessoa de cultura, o que não chega: um intelectual é sobretudo aquele a quem «a ideia, por mais elementar que seja, compromete e ordena a vida». Tudo o que comprometa e ordene uma vida diz respeito à moral - melhor, à moral individual. Por isso é tão difícil identificar um verdadeiro intelectual; seria preciso conhecê-lo por dentro, conhecer a sua construção moral.
Quando dizemos que Eduardo Prado Coelho ou Vasco Graça Moura são dois grandes «intelectuais», na verdade o que queremos dizer é que são pessoas cultas, ligadas ao mundo da cultura e aos livros. Mas poucos de nós poderão afirmar algo sobre a sua forma de estar na vida. Uma coisa é o que se faz. Outra coisa é o porquê do que se faz - a origem e a causa mais profunda dos nossos actos. O intelectual é alguém que deriva prazer do acto intelectual e, mais que isso, alguém que apenas deriva prazer mediante um esforço intelectual. No limiar, é alguém que intelectualiza toda a sua existência e toda a sua vivência - mesmo nas emoções mais simples e até espontâneas.
Ser intelectual é erguer a valor máximo o «brincar com as ideias» - o desconstruir argumentos. É por isso necessariamente imoral - porque será sempre porventura imoral, e na moral basta a postura, mesmo sem consequências, para que o sujeito seja considerado imoral. Qualquer intelectual será inevitavelmente um apaixonado pela língua, porque é através dela que ele se cumpre inteiramente. Um intelectual previlegia a escrita à oralidade, que é mais dada a emoções e menos a perfeccionismos e revisionimos.
Será também - e sempre - um apaixonado pela contradição e pelo paradoxo. Um intelectual tem que ser um sofista - pelo menos em potência. Isto implica a tal capacidade destruidora de tudo o que seja intelectualizável. Por isso, um intelectual é na verdade um deus - ou aspirante a deus - da verdade. Mas não existe nenhuma verdade única, porque a contradição é sempre possível. Mas um intelectual pode dirigir a sua energia para a mera destruição argumentativa - será um sofista, ou para a construção imparcial da verdade. Estes são os dois tipos de intelectual. Mas mesmo o intelectual «bom» - o que procura a verdade - só o poderá ser se tiver capacidade para ser um destruidor. Os sofistas gregos eram tidos em conta exactamente por essa capacidade - que era necessariamente «amoral».
A marca do intelectual é, como atrás referi, ter como força moral a ideia. É certo que na interpretação de qualquer texto é necessário ter em conta o autor e o contexto, para além do que nele é expresso. Mas o intelectual não morre de amores pela Hermenêutica. Ele precisa de ideias como de pão para a boca, e não lhe interessa muito como e onde é que esse pão foi feito - quer é mastigá-lo, devorá-lo. O intelectual quer dissecar qualquer coisa que lhe seja apresentada, independentemente de quem a tiver dito - e apesar de ser indiferente, ele insistirá em não querer saber quem disse o quê.
A minha ideia ao propor o «Quizz aforístico» foi ilustrar este último ponto. O intelectual procura - tanto quanto é possível ao homem - despir-se de preconceitos. Procura a imparcialidade, a objectividade, a verdade das coisas. Não adianta dizer que a objectividade total é impossível - claro que é, por definição. Mais que não fosse, orque para que algo seja considerado objectivo, seria necessário haver «alguém» com autoridade para o dizer, e esse alguém será sempre passível de subjectividade. [Deus não mora aqui.] Mas se o «branco» da objectividade e o «preto» da subjectividade são impossíveis de atingir, isso não quer dizer que tudo o que está no meio é indeferenciável e merecedor da nossa indiferença, porque há um contínuo de tonalidades. Ora o intelectual procura a tonalidade o mais clara que lhe é humanamente possível.
Um intelectual discutirá sempre a frase «Sê aquilo que te tornares» sobretudo pelo que ela contém e não por quem a tenha dito. Ora isto torna o intelectual propenso a uma certa insociabilidade, dado que a maioria das pessoas nutre um prazer especial pelas pequenas fofoquices, os rótulos fáceis, e sobretudo a pequena vaidade - a feira de vaidades pessoais que descamba invariavelmente nos debates «ad hominem», em que não se discutem ideias mas sim supostas capacidades intelectuais.
Em Portugal, e os blogs não escapam a isso, o debate é mais uma luta de pavões do que um combate de guerreiros. Ninguém escuta ninguém. Fazem-se referências a coisas que se leram, listam-se recomendações, puxa-se dos colarinhos que se tiver à mão - e às vezes dos que não se têm. Tomara que mais pessoas soubessem o quanto se pode aprender numa conversa com qualquer pessoa, independentemente da sua inteligência. Mas há quem insista, passados 20 segundos, em chamar o outro de «estúpido!» e a partir daí partir para outros mimos.
Apesar da estética que alguns lhe possam apontar, isso é meramente circunstancial e ad-hoc. A postura do intelectual é por construção uma escolha ética e não estética. É uma moral, em que o imparcialidade e a busca da verdade surgem no topo da cadeia de valores. E, como em toda a moral, traz certos constrangimentos. Por isso, a próxima vez que ouvires alguém dizer «eu sou um intelectual» não tenhas a reacção comummente disparatada de achar a pessoa «convencida» (de que é muito inteligente). Pensa antes que pode ser um pobre coitado que já perdeu a capacidade de cheirar uma flor sem intelectualizar esse pequeno gesto.
O dicionário que sugeri é muito pobre: sugere que ser um intelectual (substantivo) é ter uma actividade onde o uso do intelecto é preponderante; ou pessoa de cultura, o que não chega: um intelectual é sobretudo aquele a quem «a ideia, por mais elementar que seja, compromete e ordena a vida». Tudo o que comprometa e ordene uma vida diz respeito à moral - melhor, à moral individual. Por isso é tão difícil identificar um verdadeiro intelectual; seria preciso conhecê-lo por dentro, conhecer a sua construção moral.
Quando dizemos que Eduardo Prado Coelho ou Vasco Graça Moura são dois grandes «intelectuais», na verdade o que queremos dizer é que são pessoas cultas, ligadas ao mundo da cultura e aos livros. Mas poucos de nós poderão afirmar algo sobre a sua forma de estar na vida. Uma coisa é o que se faz. Outra coisa é o porquê do que se faz - a origem e a causa mais profunda dos nossos actos. O intelectual é alguém que deriva prazer do acto intelectual e, mais que isso, alguém que apenas deriva prazer mediante um esforço intelectual. No limiar, é alguém que intelectualiza toda a sua existência e toda a sua vivência - mesmo nas emoções mais simples e até espontâneas.
Ser intelectual é erguer a valor máximo o «brincar com as ideias» - o desconstruir argumentos. É por isso necessariamente imoral - porque será sempre porventura imoral, e na moral basta a postura, mesmo sem consequências, para que o sujeito seja considerado imoral. Qualquer intelectual será inevitavelmente um apaixonado pela língua, porque é através dela que ele se cumpre inteiramente. Um intelectual previlegia a escrita à oralidade, que é mais dada a emoções e menos a perfeccionismos e revisionimos.
Será também - e sempre - um apaixonado pela contradição e pelo paradoxo. Um intelectual tem que ser um sofista - pelo menos em potência. Isto implica a tal capacidade destruidora de tudo o que seja intelectualizável. Por isso, um intelectual é na verdade um deus - ou aspirante a deus - da verdade. Mas não existe nenhuma verdade única, porque a contradição é sempre possível. Mas um intelectual pode dirigir a sua energia para a mera destruição argumentativa - será um sofista, ou para a construção imparcial da verdade. Estes são os dois tipos de intelectual. Mas mesmo o intelectual «bom» - o que procura a verdade - só o poderá ser se tiver capacidade para ser um destruidor. Os sofistas gregos eram tidos em conta exactamente por essa capacidade - que era necessariamente «amoral».
A marca do intelectual é, como atrás referi, ter como força moral a ideia. É certo que na interpretação de qualquer texto é necessário ter em conta o autor e o contexto, para além do que nele é expresso. Mas o intelectual não morre de amores pela Hermenêutica. Ele precisa de ideias como de pão para a boca, e não lhe interessa muito como e onde é que esse pão foi feito - quer é mastigá-lo, devorá-lo. O intelectual quer dissecar qualquer coisa que lhe seja apresentada, independentemente de quem a tiver dito - e apesar de ser indiferente, ele insistirá em não querer saber quem disse o quê.
A minha ideia ao propor o «Quizz aforístico» foi ilustrar este último ponto. O intelectual procura - tanto quanto é possível ao homem - despir-se de preconceitos. Procura a imparcialidade, a objectividade, a verdade das coisas. Não adianta dizer que a objectividade total é impossível - claro que é, por definição. Mais que não fosse, orque para que algo seja considerado objectivo, seria necessário haver «alguém» com autoridade para o dizer, e esse alguém será sempre passível de subjectividade. [Deus não mora aqui.] Mas se o «branco» da objectividade e o «preto» da subjectividade são impossíveis de atingir, isso não quer dizer que tudo o que está no meio é indeferenciável e merecedor da nossa indiferença, porque há um contínuo de tonalidades. Ora o intelectual procura a tonalidade o mais clara que lhe é humanamente possível.
Um intelectual discutirá sempre a frase «Sê aquilo que te tornares» sobretudo pelo que ela contém e não por quem a tenha dito. Ora isto torna o intelectual propenso a uma certa insociabilidade, dado que a maioria das pessoas nutre um prazer especial pelas pequenas fofoquices, os rótulos fáceis, e sobretudo a pequena vaidade - a feira de vaidades pessoais que descamba invariavelmente nos debates «ad hominem», em que não se discutem ideias mas sim supostas capacidades intelectuais.
Em Portugal, e os blogs não escapam a isso, o debate é mais uma luta de pavões do que um combate de guerreiros. Ninguém escuta ninguém. Fazem-se referências a coisas que se leram, listam-se recomendações, puxa-se dos colarinhos que se tiver à mão - e às vezes dos que não se têm. Tomara que mais pessoas soubessem o quanto se pode aprender numa conversa com qualquer pessoa, independentemente da sua inteligência. Mas há quem insista, passados 20 segundos, em chamar o outro de «estúpido!» e a partir daí partir para outros mimos.
Apesar da estética que alguns lhe possam apontar, isso é meramente circunstancial e ad-hoc. A postura do intelectual é por construção uma escolha ética e não estética. É uma moral, em que o imparcialidade e a busca da verdade surgem no topo da cadeia de valores. E, como em toda a moral, traz certos constrangimentos. Por isso, a próxima vez que ouvires alguém dizer «eu sou um intelectual» não tenhas a reacção comummente disparatada de achar a pessoa «convencida» (de que é muito inteligente). Pensa antes que pode ser um pobre coitado que já perdeu a capacidade de cheirar uma flor sem intelectualizar esse pequeno gesto.
7 Comments:
Abruta: O Eça não era um intelectual, era um crítico mordaz dos costumes e da sociedade, um homem notabilíssimo, grande romancista - que eu amo - mas não julgo que fosse um intelectual. Intelectual que eu conheça só o Fernando Pessoa. Um intelectual tem que se dedicar a destruir e brincar com as "ideias", e não com os outros.
Não chega ser politicamente incorrecto para ser um intelectual. Nem ser crítico. Como disse - é uma mera opinião, e tens que perceber que em prol do que eu digo é-me INDIFERENTE que seja «insonsa» ou não, porque não me rejo por critérios estéticos - ser intelectual é uma forma de estar na vida. Não creio que o Eça tivesse essa postura - pelo menos não da forma que Pessoa o tinha.
Quanto aos sofistas, point taken, e actualizei esse parágrafo. Julgo que é mais correcto distinguir dois "tipos" de intelectuais: os Sofistas (os "destruidores") e os que buscam a Verdade (os "contructores"). Mas o que eu defendo é que os do segundo tipo têm que ter a CAPACIDADE dos sofistas para serem intelectuais.
OU seja, têm que ser potenecialmetne sofistas mas depois orientar as suas energias para a «imparcialidade», tanto quanto possam.
De qualquer maneira, o post está aberto a revisão.
Obrigado pelos comments.
By T. M., at 1:12 da manhã
O facto do Pessoa ter TAMBÉM escrito coisas «mordazes» não invalida o ponto. O que eu disse era que escrever coisas mordazes não era condição SUFICIENTE para se ser intelectual. Nem tão pouco é condição necessária. POde ocorrer ou não. QUnato à tese de doutoramento... pegas nisso tu?
By T. M., at 1:41 da manhã
prometo "comentar" com mais tempo. O tema é demasiado interessante para 1/2 dúzia de palavras
By jmnk, at 10:24 da manhã
Parabéns, Tiago. Muito bem escrito e rico em conteúdo. Beijinhos.
By Anónimo, at 11:31 da manhã
A única coisa que consigo concluir deste texto, é que o autor não é um intelectual...
By Anónimo, at 5:24 da tarde
que futilidade...
By Anónimo, at 5:25 da tarde
...e porquê, caro anónimo? Vamos lá a debater ideias, vá.
Não é um intelectual na "sua" definição, ou na definição proposta no texto?
Não me parece de qualquer modo que haja qualquer alusão no texto a esse carácter reflexivo.
Quanto à "futilidade", agradeço, até porque as provocações baratas são sempre um estímulo para quem escreve.
By T. M., at 5:42 da tarde
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