aforismos e afins

24 julho 2005

Desafios liberais (3)

1. Direito ao indivíduo prostituir-se, sim ou não?

2. Direito ao indivíduo escravizar-se, sim ou não?

Sarsfield Cabral (SC) abordou neste artigo a questão da prostituição e da escravatura, numa curiosa coincidência com a sugestão de AA a propósito do anterior desafio liberal, e do que anteriormente já publicara sobre o tema da prostituição, aqui e aqui. A prostituição não deve ser criminalizada, nem do lado de quem fornece, nem do lado de quem usufrui o serviço em causa, dado ser uma troca livre entre adultos. Contudo, e devido às suas especificidades e à forma de organização da sua comercialização, julgo que a melhor solução é a regulamentação e não apenas a descriminalização, de forma a dar alguma protecção a ambas as partes contratuais. No fundo, algo próximo do que existe na Holanda. O argumento «moral» é uma coisa sem sentido para um liberal, porque esse serviço se efectua entre duas pessoas que não incomodam mais ninguém. O argumento das «coitadinhas» é de um paternalismo inaceitável e muito anti-liberal, já que não aceita que tenha havido uma «escolha», mas antes um acaso em que a pobrezinha foi vítima de circunstância A ou B.

A questão da escravatura é muito diferente, e SC é abusivo ao dizer: «Seria coerente, então, tirar todas as consequências lógicas. Por exemplo por decisão minha, deveria poder vender-me como escravo. Se posso vender o meu corpo, porque me impedem de vender a minha pessoa?». Prostituir-se é vender o corpo. Mais exactamente, é somente alugar o corpo, já que ele continua a pertencer à pessoa e apenas é posto à disposição durante a prestação do serviço. A escravatura é, bem diferentemente, a venda da pessoa, ou aluguer, se por período estipulado. Em qualquer dos casos a escolha de ser escravo implica que não se possa voltar atrás nessa decisão no período acordado. Não há nenhum paralelo lógico a fazer, porque o corpo e a pessoa estão a níveis qualitativamente diferentes.
A escravização é uma escolha irrevogável que coarcta a possibilidade de escolha e, consequentemente, auto-determinação do indivíduo.

Uma resposta previsível (e «fácil», mas desadequada) é dizer que a escravatura é contra a dignidade humana e não deve ser tolerada. Outra é que ninguém pode em perfeita consciência fazer tal escolha. Ou, ainda, que a vida que se levaria seria profundamente imoral. Mas, aqui tratam-se de desafios, e o desafio é saber se um adulto, em consciência, numa sociedade liberal que respeite os seus direitos e as suas escolhas, nomeadamente as escolhas morais que não interfiram com a liberdade dos outros, tem ou não direito a decidir deixar de ser livre. Uma pessoa pode achar que outra leva uma vida imoral ou devassa, mas daí a achar que o que ela faz deve ser proibido vai um grande passo. O liberal não impõe modos de vida, apenas quer que o deixem em paz para viver o que escolheu para si.

Outra justificação que também será natural esperar é que um indivíduo não pode escolher livremente escravizar-se porque isso ofende o valor da «liberdade». Ou seja, impor a regra «o indivíduo terá direito a escolher tudo menos aquilo que lhe retire a possibilidade de escolha ela própria». Isto é possível, mas é também algo paradoxal, porque não permite liberdade de escolha total. Podemos, então, admitir esta regra como sendo um «axioma», aceitando-o sem exigir uma justificação. Mas convém admitirmos a incompletude do edifício de valores que se ergue sobre esta regra, aceitando que mesmo a «liberdade de escolha» tem certos limites - o não se poder coarctar a si própria.

A escravização significa perder toda e qualquer liberdade de escolha no futuro. Podemos até certo ponto fazer um paralelo entra esta escolha e o suicídio (tema do próximo desafio), já que falamos do direito à auto-determinação do indivíduo, e a medida em que ele deve incluir (ou não) o direito a por um ponto final nessa mesma auto-determinação. Mas a analogia não é totalmente legítima. Porque o suicídio significa terminar com a vivência de acordo com os valores que se defenda, enquanto a escravatura significa continuar uma existência na qual cedemos a liberdade de escolha dos valores por que ela será regida. O suicídio (bem sucedido) não permite arrependimento, ao contrário da escravização. Se bem que possamos defender que o indivíduo "perfeitamente racional" é capaz de antecipar o futuro, o argumento de que ele se pode enganar e isso depois é irreversível é um argumento forte.

Mas basta admitir que ele se pode enganar marginalmente e que a consequência desse erro é incomensuravelmente grave e destruidora para questionar esse direito. Sendo este um argumento forte, é preciso entender os diferentes planos em que se situa. Há o ponto de vista teórico - em que admitimos que o indivíduo pudesse ser absolutamente racional a antecipar sentimentos futuros -, e o ponto de vista prático - em que admitimos que o ser humano não é absolutamente racional. Se do ponto de vista prático parece ser unânime considerar que o direito à escravatura deve ser proibido, do ponto de vista teórico a questão mantém-se. E devemos ter a ombridade de dizer que o argumento prático é paternalista, porque assume que podemos proibir o indivíduo de decidir por ele próprio com base no facto de ele se poder vir a arrepender.

O que acha o leitor do assunto? Sim ou não ao direito a prostituir-se? E ao direito da pessoa absolutamente racional se escravizar?

14 Comments:

  • Caro Paulo,

    Do Dicionário online Porto Editora:

    ESCRAVO:
    1. aquele que vive em absoluta dependência de alguém;
    2. pessoa privada de liberdade e submetida a um poder absoluto.

    A "forma" como a pessoa "chegou" a escravo não importa para a definição de escravo, que é aquele que não tem qualquer liberdade.

    Não é o mesmo que a prostituição, como eu refiro no texto, porque a prostituição diz respeito ao "corpo" e a escravatura à própria "pessoa", já que a sua existência fica TOTALMENTE condicionada a outrém. Enquanto na prostituição apenas se "aluga" o corpo, e temporariamente.

    À luz disto, o que responderia no final? Porque quando diz "se uma pessoa tomar conscientemente a decisão de se vender não será por definição um escravo", isto parece sugerir que a sua resposta seria "sim", mas o problema é que as premissas da sua conclusão estão, quanto a mim, erradas.

    Obrigado pelo comment.

    By Blogger T. M., at 4:45 da tarde  

  • "Quem conscientemente se priva ele próprio da sua liberdade ao "vender-se" , estará em contradição com as definições vigentes..."

    Isto não é contraditório com a definição de "pessoa privada de liberdade". POrque isto não é o mesmo que "pessoa que FOI PRIVADA de liberdade POR OUTRÉM". A dificuldade está aí mesmo: se a pessoa se pode privar ela própria da liberdade ou não.

    A questão do pássaro é interessante e ponto de partida para outras questões, mas não queria aprofundar muito. Mas repare que o problema é que ele nasce no cativeiro, logo nasce sem liberdade e num espaço que não é o seu habitat natural.

    Há muitas formas de adaptação á vida selvagem, embora com os pássaros isso seja algo difícil. Mas há exemplos de sucesso com grandes felinos como o tigre, por exemplo. QUe são criados em cativeiro e progressivamente expostos à vida selvagem, e depois enviados em liberdade.

    È sempre preferível não misturar conceitos. O pássaro não tem a liberdade de ser "ele-próprio" porque nasceu num ambiente que não é natural. E mesmo que morresse se fosse liberto, só assim ele seria "livre" na essência mais profunda da sua natureza. POdemos dizer que a "sobrevivência" se impóe ao valor da "liberdade", proque ela de facto acarreta a perda da vida e logo da "capacidade" de exercer a liberdade. Mas não devemos é chamar outro nome às coisas.

    Um pássaro em cativeiro pode ter "mais" e/ou "melhores" condições de vida/sobrevivência, mas não é livre. Mesmo que libertá-lo fosse morrer.

    By Blogger T. M., at 5:08 da tarde  

  • Paulo: da morte falaremos em breve, vamos deixar o assunto para depois :)

    By Blogger T. M., at 6:34 da tarde  

  • "Por essa ordem de ideias e como as "leis" não permitem a "escravidão", no fundo já somos escravos."

    Gosto desta tua frase, porque replica o tal problema da "incompletude" que é inevitável.

    Concordo que a liberdade é difícil de definir por vezes, mas não devemos relativizar os conceitos. Podemos dizer que somos "escravos do trabalho", etc, mas isso é apenas uma figura de estilo, não é literal.

    A mim interessa-me discutir a problema da escravatura "mesmo", isto é, da perda de qualquer hipótese de auto-determinação do indivíduo.

    By Blogger Tiago Mendes, at 8:14 da tarde  

  • Obrigado pelo comment tão claro e audacioso, Marta. Acho que concordo quase na totalidade, embora confesse que na prática julgo que se deve proibir a possibilidade de se tornar escravo porque poderá ser fácil manipular alguém para assumir tal contra sua própria vontade. Ex, sob ameaça de morte, ou chantagem sobre familiares, etc, o que seria relativamente fácil de acontecer em países que estão longe das democracias de tipo ocidental. COmo África.

    By Blogger Tiago Mendes, at 8:40 da tarde  

  • "Como terá o direito de, a determinada altura dessa caminhada, seguir outro caminho, caso a vivência escolhida, não for satisfatória."

    Mas, no caso do escravo, por definição, não tem direito a arrepender-se.

    No entanto, acho que esta discussão está se a esquecer de uma diferença fundamental entre prostituição e escravatura: a ilegalização da prostituição (que, aliás, é legal em Portugal à mais de 20 anos...) implica que o Estado reprima efectivamente a prostituição.

    No caso da escravatura, não é necessário que o Estado faça algo para impedir que as pessoas se vendam como escravas - a unica coisa que o Estado tem que fazer é ignorar hipotéticos "contratos de escravidão", ou seja, a policia não perseguir escravos fugitivos, e caso o "dono" o faça, tratar isso como um simples caso de rapto.

    By Anonymous Anónimo, at 10:56 da tarde  

  • Miguel, o teu comentário levanta um ponto interessante: a escravatura pode de facto acontecer à margem do Estado, na esfera privada, sendo que nesse caso nenhuma das partes poderá requerer legalmente o incumprimento de qualquer contrato. Um exemplo que não é o melhor, mas ainda assim, são os temporários contratos feitos entre sado-masoquistas, entre escravo e Mestre.

    Paulo: ninguém é obrigado a ser dono, mas naturalmente se permitirmos a escravatura, esse direito terá que existir, como referiu a Marta.

    Depois de pensar um pouco, penso que o melhor seria o Estado não legislar. Mas depois põe-se a questão de poderem existir contratos privados em que se estabeleça a escravatura e em que uma das partes tenha sido "forçada" a assiná-la. Julgo que isto pode ser um argumento suficiente - a protecção duma eventual minoria face a um direito de todos (mas pouco provável de ser escolhido, dada a natureza humana) - para se proibir explicitamente a escravização.

    Vou pensar mais um bocado sobre o assunto. A dialéctica continua. Obrigado a todos pelos comments.

    M

    By Blogger Tiago Mendes, at 12:46 da manhã  

  • "a escravatura pode de facto acontecer à margem do Estado, na esfera privada, sendo que nesse caso nenhuma das partes poderá requerer legalmente o incumprimento de qualquer contrato"

    Se nenhuma das portes pode obrigar a outra a cumprir o contrato, não é escravatura.

    By Anonymous Anónimo, at 1:10 da manhã  

  • Miguel: nenhuma das partes pode USAR O ESTADO, através dos tribunais, para cumprir esse contrato. Mas podem ameaçar com pistolas, torturar, etc. Não é preciso ter visto o «120 dias de Sodoma» para imaginar como manter pessoas em cativeiro e absoluta escravidão. Só disse que se isso for feito na esfera privada, o Estado não pode ser invocado.

    By Blogger T. M., at 1:23 da manhã  

  • Pois, mas se o "dono" do escravo ameaça-lo com pistolas, torturar, o "escravo" pode recorrer ao Estado. No fundo, o Estado não reconhecer a escravatura mais não é do que o Estado dizer "o contrato pelo qual 'A compromete-se a obedecer a B e confere a B o direito de fazer cumprir o contrato' não é reconhecido e qualquer punição que B inflija a A cai na alçada do direito comum"

    By Anonymous Anónimo, at 1:29 da manhã  

  • Claro que "pode" recorrer ao Estado. Mas se for "realmente" escravizado (isto é, com "sucesso"), o dono não lhe vai permitir isso certamente. Ou pode permitir isso mas sob chantagem sob familiares, etc, fazendo com que na realidade ele não possa usar qualquer mecanismo de defesa. Aí é que está o problema.

    By Blogger T. M., at 1:33 da manhã  

  • No fundo, é a mesma coisa que a posição dos anarquistas clássicos face à "usura". Os anarquistas não pretendem proibir ninguem de fazer contratos "usurários", apenas dizem "na sociedade anarquista, as nossas milicias não obrigarão nenhum devedor a pagar juros, e protegerão qualquer devedor se o credor tentar usar a força para cobrar os juros"

    By Anonymous Anónimo, at 1:35 da manhã  

  • "Mas se for "realmente" escravizado (isto é, com "sucesso"), o dono não lhe vai permitir isso certamente"

    Isso acontece quer a escravatura seja ilegal ou apenas "não-legal"

    nota: o meu comentário anterior era uma continuação do ante-anterior, não uma respostao ao comentário a que estou respondendo

    By Anonymous Anónimo, at 1:38 da manhã  

  • Tens razão que isso acontece quer seja ilegal ou não. Mas temos que olhar para o que está lá fora. Se a escravatura for proibida e for um crime, o incentivo para acusar poderá ser maior, por haver protecção estatal. POderá também ser menor porque o castigo do "senhor" será certamente maior, para que no final o incentivo do escravo em tentar fugir, etc, seja menor.

    Há muitos casos de prostituição ilegal que são próximos de situações de escravatura. Isto em paises como Espanha ou quem sabe Portugal. E há mesmo escravatura em países do Leste Asiático e em África.

    By Blogger T. M., at 1:46 da manhã  

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